Headache Medicine, v.2, n.1, p.25-32, jan./feb./mar. 2011 27
ENXAQUECA E SUA AURA NA GÊNESE DAS VISÕES MÍSTICAS E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA: O CASO DE HILDEGARD VON BINGEN
riqueza de informações contidas em narrativas literárias
que descrevem a doença.
São muitos os exemplos, como A montanha mágica,
de Thomas Mann, que tem como cenário um sanatório
de tuberculosos; A morte de Ivan Ilích, de Leon Tolstói,
que fala do penoso confronto de um paciente terminal
com a dor e a morte, e a problemática relação médico-
paciente que se estabelece nesta situação; A enfermaria
n. 6, de Anton Tchékhov e Um médico rural, de Franz
Kafka, que discutem a necessidade – para o estabe-
lecimento de uma real empatia com o doente, impres-
cindível ao bom exercício da clínica – do profissional de
saúde se colocar na perspectiva do sujeito acometido
pela doença; O alienista, de Machado de Assis, que sati-
riza a psiquiatria autoritária do século XIX; diversos contos
dos médicos escritores portugueses Miguel Torga e
Fernando Namora, que traduzem uma visão da medicina
expurgada do pensamento metafórico e resistente a ele,
evitando a vitimização do doente sem abdicar da
compaixão, da solidariedade e dos deveres de cons-
ciência diante da dor alheia; entre tantos outros. Scliar
propõe uma reflexão sobre as diferenças das abordagens
descritivas da doença por médicos e por escritores, num
ensaio cujo objetivo é defender a ideia da inclusão de
textos literários no treinamento de médicos e profissionais
de saúde para ajudar a superar o preocupante hiato de
comunicação que vem se instaurando no ato da anam-
nese, facilitando o entendimento da doença em sua
dimensão mais ampla e contribuindo para um melhor
relacionamento profissional-paciente.
Pioneira no ramo da chamada "medicina narrativa"
– disciplina inserida no recente departamento das "huma-
nidades médicas" existente em alguns cursos de medicina
–, a médica e crítica literária Rita Charon,
(3)
autora de
Narrative medicine – honoring the stories of illness, investe
ativamente na defesa da aplicabilidade dos estudos de
narratologia aos currículos médicos, propondo não só o
treinamento do profissional de saúde em redação e
interpretação do texto da anamnese com base em
conhecimentos técnicos linguísticos e literários, como uma
maior e mais atenta utilização das narrativas produzidas
pelos próprios pacientes no processo de investigação do
histórico e da evolução das doenças com finalidade
diagnóstica.
Em seu livro O olhar médico, Scliar fala ainda da
importância da literatura (poesia e ficção) não só como
instrumento diagnóstico, mas também como estratégia
terapêutica. Menciona, por exemplo, a existência nos
Estados Unidos de uma Associação Nacional para a
Terapia pela Poesia, que edita um jornal, realiza cursos
e forma especialistas em "biblioterapia", profissionais
que trabalham pela minoração do sofrimento através
dos efeitos benéficos da leitura de obras literárias para
os doentes. Ainda segundo Scliar, também é sabido
que a literatura constitui um fator de estabilidade
emocional para os próprios escritores. Diversas pes-
quisas mostram que existe uma convincente associação
entre o temperamento artístico e certos distúrbios mentais
ou emocionais. Uma das obras que mais seriamente
investem nesta área de investigação interdisciplinar
intitula-se Creativity and disease - how illness affects
literature, art and music, do médico Philip Sandblom.
Em seu prefácio sobre as relações entre doença e
criatividade, ele defende a existência de uma influência
decisiva das doenças que vitimizam certos artistas na
constituição de suas obras, negando que os estudos
biográficos sobre os criadores devam ser descon-
siderados em defesa de estudos estritamente estéticos
sobre a natureza de suas criações: "It is evident that just
as physical and mental disorders can affect works of art,
so the opposite may occur - enjoying, even creating art
may influence the state of the soul and body".
(4)
Em prefácio à novela autobiográfica de José Cardo-
so Pires, De profundis - valsa lenta, escrita após a surpre-
endente recuperação deste escritor de um acidente vascu-
lar cerebral, o neurologista português João Lobo Antunes
lembra uma citação de Tchékhov, também médico e
doente, que dizia ser "a medicina a mulher legítima, e a
literatura a sua amante; quando de uma delas se cansava
passava a noite com a outra. Reconhecia, no entanto,
que, se apenas pudesse contar com a imaginação para
construir a sua obra literária, pouco teria para escrever". A
experiência, sobretudo a vivência de uma condição física
ou psicologicamente incapacitante, sofrida ou estig-
matizada, pode ser um fator decisivo tanto para a
deflagração de um temperamento artístico reativo, como
para a determinação de certas características do próprio
objeto, que refletem aspectos, peculiaridades ou impe-
rativos constitucionais do sujeito criador.
(5)
Pedro Nava,
(6)
notório médico e memorialista, tam-
bém afirma, em seu ensaio A medicina de Os lusíadas,
que tanto a literatura como as artes plásticas são fontes
informativas importantes para o estudo da história da
Medicina: “Telas, murais, afrescos, painéis, vasos
iluminados, cinzeladuras, baixo-relevos, frisos e estátuas
contam-se às centenas, saídos das mãos de grandes
mestres escultores e pintores, tendo por objeto cenas que
interessam à patologia, ao exercício profissional, à cirurgia,