Headache Medicine, v.2, n.1, p.25-32, jan./feb./mar. 2011 25
Enxaqueca e sua aura na gênese das visões
místicas e da criação artística: o caso de
Hildegard von Bingen
Migraine and aura in the genesis of mystical visions and artistic creation:
the case of Hildegard von Bingen
RESUMORESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Este ensaio analisa as interpretações críticas e clínicas de
algumas alterações perceptivas presentes na aura das
enxaquecas tais como se apresentam no âmbito das
representações artísticas, segundo as especulações de alguns
estudiosos – com destaque para as conclusões do neurologista
Oliver Sacks. Com o intuito de promover um maior inter-
câmbio entre as ciências e as humanidades, propõe-se uma
discussão sobre os limites entre a arte da cura e a cura pela
arte, elencando as opiniões de diversos médicos e escritores
sobre o assunto e focalizando a importância, para este debate,
da obra sui generis da freira alemã, artista e mística, autora
de dois dos primeiros compêndios de medicina da história
REVIEW ARTICLEREVIEW ARTICLE
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REVIEW ARTICLE
Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Formação acadêmica nas áreas de Medicina e Letras, doutora em Letras pela PUC-Rio e
Universidade de Lisboa, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil
Ferreira EM
Enxaqueca e sua aura na gênese das visões místicas e da criação artística:
o caso de Hildegard von Bingen. Headache Medicine. 2011;2(1):25-32
da humanidade e portadora de migrânea: Hildegard von
Bingen.
DescritoresDescritores
DescritoresDescritores
Descritores: Medicina; Literatura; Terapias sensoriais através
das artes; Cefaleia histamínica; Medicina na Literatura
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACT
This essay analyses the critical and clinical interpretations of
certain perception disturbances present in the aura of
migraines, as represented in artistic works, according to the
speculations of some researchers, but mainly focusing on the
conclusions of the neurologist, Oliver Sacks. With the aim of
promoting an interchange between the fields of science and
humanities, the essay discusses both the limits of the art of
curing and curing through art, citing the opinions of several
doctors and writers concerning this matter. For this debate,
particular focus is centered on the importance of the sui generis
work of the German nun, artist and mystic, author of two of
the first medical compendiums of the history of mankind and
migraine sufferer: Hildegard von Bingen.
Keywords: Keywords:
Keywords: Keywords:
Keywords: Medicine; Literature; Sensory Art Therapies; Cluster
headache; Medicine in Literature
Há momentos, e é uma questão de apenas cinco ou seis segundos,
em que a pessoa sente a presença da harmonia eterna ...
uma coisa terrível é a apavorante clareza com que ela se manifesta
e o êxtase que arrebata a pessoa.
Se este estado durasse mais do que cinco segundos, a alma
não o poderia suportar e teria de desaparecer.
Durante esses cinco segundos, vivo toda uma existência humana,
e por isso eu daria minha vida inteira sem julgar estar pagando
preço demasiado alto.
Fiódor Dostoiévski
(sobre sua experiência com as auras epilépticas extáticas às quais
atribuía enorme importância)
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INTRODUÇÃO
Em 23 de abril de 1849, o escritor russo Fiódor
Dostoiévski foi detido e preso por participar de um grupo
intelectual liberal chamado Círculo Petrashevski, sob
acusação de conspirar contra o czar Nicolau I da Rússia.
Depois das revoluções de 1848, na Europa, Nicolau
mostrou-se relutante a qualquer organização clandestina
que poderia pôr em risco sua autocracia. O Círculo
Petrashevsky era dedicado principalmente à discussão
das condições de vida na Rússia e centrava-se nas obras
proibidas da imensa biblioteca de Petrashevsky.
Dostoiévski, na verdade, não ia às reuniões do Círculo
há mais de três meses quando foi preso e participava
realmente de uma organização radical liderada por
Nikolai Spechniev, que se tornaria o protótipo para
Nikolai Stavróguin, protagonista de seu romance Os
demônios. Essa organização, porém, não foi descoberta
pelas autoridades, e sua existência só veio a público
em 1922.
Dostoiévski passou oito meses na Fortaleza de Pedro
e Paulo até que, em 22 de dezembro, a sentença de
morte por fuzilamento foi anunciada. Em 23 de dezem-
bro, os membros do Círculo foram levados ao lugar da
execução, e três homens, inclusive o próprio Petrashevski,
foram amarrados aos postes em frente ao pelotão.
Dostoiévski era um dos próximos, mas antes do fuzila-
mento chegou uma ordem do czar para que a pena
fosse comutada para prisão com trabalhos forçados e
exílio. Posteriormente, os membros souberam que a
ordem havia sido assinada há dias, mas que o czar exigira
a falsa execução como uma punição a mais. Dostoiévski
recebeu os grilhões e partiu para o exílio na noite de
Natal. Esses fatos foram narrados pelo escritor em uma
carta a seu irmão Mikhail Dostoiévski, na qual ele faz
várias referências à obra Os últimos dias de um
condenado à morte, de Victor Hugo.
Foi na prisão que Dostoiévski sofreu seu primeiro
ataque de epilepsia, doença que o acompanharia pelo
resto da vida, e que ele transpôs para vários de seus
personagens, como o Príncipe Míchkin (O idiota), Kiríllov
(Os demônios) e Smerdiákov (Os irmãos Karamázov).
Embora alguns biógrafos insistam que a primeira crise
de Dostoiévski aconteceu antes da prisão, as cartas que
ele enviou ao irmão deixam bastante claro que ele só
começou a apresentar a doença no cárcere. Os estudos
médicos nunca chegaram a um acordo sobre a epilepsia
de Dostoiévski. Freud afirmou que era uma doença
histérica, e não epilepsia, mas o austríaco obviamente
ignorava alguns aspectos da biografia de Dostoiévski,
como a morte de seu filho mais novo após um ataque, o
que parece indicar uma doença genética. A maioria dos
médicos, hoje em dia, acredita que ele sofria de uma
epilepsia de lobo temporal.
(1)
Em A epilepsia retratada ao longo da história, Elza
Márcia Targas Yacubian
(2)
comenta o quanto o caso de
Dostoiévski mobilizou os epileptologistas ao longo do
tempo: "Segundo Gastaut (1978), vários fatores apontam
para uma epilepsia generalizada idiopática: ocorrência de
automatismos descrita unicamente no período pós-crítico;
ausência de menção da aura extática em suas anotações
(este fenômeno teria sido criado pelo escritor); predis-
posição genética para epilepsia (seu filho, Alexis, faleceu
aos três anos de idade em estado de mal epiléptico);
ausência de sinais neurológicos ou psiquiátricos sugestivos
de doença orgânica; algumas crises, especialmente as que
ocorriam pela manhã, eram precedidas pelo que Dos-
toiévski chamava de "inícios", ou seja, mioclonias maciças;
todas as suas crises eram generalizadas convulsivas."
Segundo a autora, Gastaut (1984) acentua que faltam
a Dostoiévski as características intercríticas de perso-
nalidade de indivíduos com epilepsia temporal, como
as que se verificam nos casos de outros artistas, como o
escritor Gustave Flaubert e o pintor Van Gogh: "Seu com-
portamento era normal, não havia traços de gliscroidia e
impulsividade, e sua vida sexual foi normal com suas duas
esposas e suas duas amantes (considerava inclusive o
excesso de sua função sexual como possível causa de
suas crises). Gastaut propôs então um conceito unicista
da epilepsia do escritor, que deve ter sofrido uma lesão
temporal discreta, incapaz de produzir a fenomenologia
intercrítica característica da epilepsia temporal, mas a
predisposição genética tornou produtiva a lesão temporal
silente, de forma a induzir generalização secundária muito
rápida em cada crise."
Apesar da seriedade dos estudos científicos – que
não conseguem, no entanto, chegar efetivamente a uma
conclusão – chama a atenção a profusão de informações
diversas e detalhadas sobre a doença elencadas por
Dostoiévski em seus romances, cartas e diários, e o quanto
a condição mórbida que passa a vivenciar em certo
momento de sua vida torna-se um manancial para suas
reflexões filosóficas e uma fonte de inspiração para a
sua produção literária. A este respeito, o escritor e médico
sanitarista Moacyr Scliar comenta, em seu artigo "Literatura
e medicina: o território partilhado", sobre a pobreza dos
dados obtidos no texto da anamnese médica na sua
forma convencional quando comparado à inestimável
FERREIRA EM
Headache Medicine, v.2, n.1, p.25-32, jan./feb./mar. 2011 27
ENXAQUECA E SUA AURA NA GÊNESE DAS VISÕES MÍSTICAS E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA: O CASO DE HILDEGARD VON BINGEN
riqueza de informações contidas em narrativas literárias
que descrevem a doença.
São muitos os exemplos, como A montanha mágica,
de Thomas Mann, que tem como cenário um sanatório
de tuberculosos; A morte de Ivan Ilích, de Leon Tolstói,
que fala do penoso confronto de um paciente terminal
com a dor e a morte, e a problemática relação médico-
paciente que se estabelece nesta situação; A enfermaria
n. 6, de Anton Tchékhov e Um médico rural, de Franz
Kafka, que discutem a necessidade – para o estabe-
lecimento de uma real empatia com o doente, impres-
cindível ao bom exercício da clínica – do profissional de
saúde se colocar na perspectiva do sujeito acometido
pela doença; O alienista, de Machado de Assis, que sati-
riza a psiquiatria autoritária do século XIX; diversos contos
dos médicos escritores portugueses Miguel Torga e
Fernando Namora, que traduzem uma visão da medicina
expurgada do pensamento metafórico e resistente a ele,
evitando a vitimização do doente sem abdicar da
compaixão, da solidariedade e dos deveres de cons-
ciência diante da dor alheia; entre tantos outros. Scliar
propõe uma reflexão sobre as diferenças das abordagens
descritivas da doença por médicos e por escritores, num
ensaio cujo objetivo é defender a ideia da inclusão de
textos literários no treinamento de médicos e profissionais
de saúde para ajudar a superar o preocupante hiato de
comunicação que vem se instaurando no ato da anam-
nese, facilitando o entendimento da doença em sua
dimensão mais ampla e contribuindo para um melhor
relacionamento profissional-paciente.
Pioneira no ramo da chamada "medicina narrativa"
– disciplina inserida no recente departamento das "huma-
nidades médicas" existente em alguns cursos de medicina
–, a médica e crítica literária Rita Charon,
(3)
autora de
Narrative medicine honoring the stories of illness, investe
ativamente na defesa da aplicabilidade dos estudos de
narratologia aos currículos médicos, propondo não só o
treinamento do profissional de saúde em redação e
interpretação do texto da anamnese com base em
conhecimentos técnicos linguísticos e literários, como uma
maior e mais atenta utilização das narrativas produzidas
pelos próprios pacientes no processo de investigação do
histórico e da evolução das doenças com finalidade
diagnóstica.
Em seu livro O olhar médico, Scliar fala ainda da
importância da literatura (poesia e ficção) não só como
instrumento diagnóstico, mas também como estratégia
terapêutica. Menciona, por exemplo, a existência nos
Estados Unidos de uma Associação Nacional para a
Terapia pela Poesia, que edita um jornal, realiza cursos
e forma especialistas em "biblioterapia", profissionais
que trabalham pela minoração do sofrimento através
dos efeitos benéficos da leitura de obras literárias para
os doentes. Ainda segundo Scliar, também é sabido
que a literatura constitui um fator de estabilidade
emocional para os próprios escritores. Diversas pes-
quisas mostram que existe uma convincente associação
entre o temperamento artístico e certos distúrbios mentais
ou emocionais. Uma das obras que mais seriamente
investem nesta área de investigação interdisciplinar
intitula-se Creativity and disease - how illness affects
literature, art and music, do médico Philip Sandblom.
Em seu prefácio sobre as relações entre doença e
criatividade, ele defende a existência de uma influência
decisiva das doenças que vitimizam certos artistas na
constituição de suas obras, negando que os estudos
biográficos sobre os criadores devam ser descon-
siderados em defesa de estudos estritamente estéticos
sobre a natureza de suas criações: "It is evident that just
as physical and mental disorders can affect works of art,
so the opposite may occur - enjoying, even creating art
may influence the state of the soul and body".
(4)
Em prefácio à novela autobiográfica de José Cardo-
so Pires, De profundis - valsa lenta, escrita após a surpre-
endente recuperação deste escritor de um acidente vascu-
lar cerebral, o neurologista português João Lobo Antunes
lembra uma citação de Tchékhov, também médico e
doente, que dizia ser "a medicina a mulher legítima, e a
literatura a sua amante; quando de uma delas se cansava
passava a noite com a outra. Reconhecia, no entanto,
que, se apenas pudesse contar com a imaginação para
construir a sua obra literária, pouco teria para escrever". A
experiência, sobretudo a vivência de uma condição física
ou psicologicamente incapacitante, sofrida ou estig-
matizada, pode ser um fator decisivo tanto para a
deflagração de um temperamento artístico reativo, como
para a determinação de certas características do próprio
objeto, que refletem aspectos, peculiaridades ou impe-
rativos constitucionais do sujeito criador.
(5)
Pedro Nava,
(6)
notório médico e memorialista, tam-
bém afirma, em seu ensaio A medicina de Os lusíadas,
que tanto a literatura como as artes plásticas são fontes
informativas importantes para o estudo da história da
Medicina: “Telas, murais, afrescos, painéis, vasos
iluminados, cinzeladuras, baixo-relevos, frisos e estátuas
contam-se às centenas, saídos das mãos de grandes
mestres escultores e pintores, tendo por objeto cenas que
interessam à patologia, ao exercício profissional, à cirurgia,
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ao ensino da Arte, à farmácia e à higiene. O espasmo
glossofacial, antes de individualizado clinicamente, foi
representado por um escultor numa carranca da Igreja de
Notre-Dame de Dijon. Cicatrizes das orelhas e dos lábios
são mostradas no retrato de van Wassanaer e na tela de
Fonquet - L'homme au verre de vin. Há um velho, do
Ghirlandaio, com um formalíssimo acne hipertrófico nasal.
O retrato do esmoler van-der-Poele é um tipo perfeito de
escleroso hipertenso a que não falta, sequer, o sinal
patognomônico das flexuosidades da artéria temporal
superficial. Os cegos de Breughel são um estudo
admirável da postura dos amauróticos. A lepra tem uma
vasta iconografia. Detalhes de entrevista médica com-
portando a interpretação da natureza do exame praticado,
mostrando a técnica de exploração, o ambiente de uma
sala de consultas, o interior de hospitais, a distribuição
dos leitos nas enfermarias, sua iluminação e aeração, a
posição dos doentes nas camas, as vestes dos médicos –
tudo tem sido representado com o pincel, o escopo e o
cinzel.
(6)
O médico Armando J. C. Bezerra
(7)
corrobora a
suposição deste estreito vínculo entre a medicina e as
artes em Admirável mundo médico – a arte na história da
medicina, livro fartamente ilustrado no qual elenca uma
diversidade de aproximações possíveis entre as deduções
sobre certas condições mórbidas expressas nos com-
pêndios científicos e o modo como foram retratadas ao
longo da história da arte, mencionando os exemplos cita-
dos por Nava, e muitos outros.
Para o médico inglês Oliver Sacks,
(8)
atualmente
professor de neurologia clínica do Albert Einstein College
of Medicine em Nova York – cuja obra pode ser consi-
derada um caso ímpar de cruzamento entre rigor científico
e talento literário –, o paradoxo da doença está antes
de tudo em seu potencial "criativo", na maneira como
ela pode revelar formas de vida e adaptações nunca
antes imaginadas, numa espécie de reação positiva à
devastação que provoca. No caso dos distúrbios neuro-
lógicos, o fenômeno torna-se ainda mais notável devido
à eventual excentricidade e à radicalidade dessas adap-
tações. Sacks não reduz seus "casos" a objetos de estudo
submetidos à ótica fria e objetiva da ciência. Trata-os,
antes, com um olhar profundamente humano, como
"personagens". Sua prosa transita entre a realidade e a
ficção, não por serem estes relatos algo mais do que
absolutamente reais, mas porque Sacks se preocupa
sobretudo com a dimensão humana, quase romanesca,
dos indivíduos de que trata. Enquanto médico, ele não
tenta colocar-se fora do homem para examiná-lo, mas
em seu interior. Para ele, a pergunta crucial não diz
respeito à doença que tal pessoa tem, mas à pessoa
que tem tal doença. Quando compreende isso, o médico
cria condições de fazer um uso mais adequado das
terapêuticas que a ciência põe à sua disposição.
Os livros de Sacks costumam expor as diversas teorias
que cercam os distúrbios neurológicos por ele comentados
numa linguagem perfeitamente acessível ao leigo e sem
nenhuma simplificação de conteúdo. Esta "informalidade"
se verifica desde os títulos de sua produção, reveladores
em si mesmos de sua postura pouco convencional
enquanto ensaísta científico: Tempo de despertar (1973),
Com uma perna só (1984), O homem que confundiu
sua mulher com um chapéu (1985), Vendo vozes - uma
viagem ao mundo dos surdos (1989), Um antropólogo
em Marte (1995), A ilha dos daltônicos (1997), Tio
Tungstênio - memórias de uma infância química (2001),
Figura 1. “A lição de anatomia do Dr. Tulp”, de Rembrandt (1632)
Figura 2. “O médico”, de Samuel Luke Fildes (1891)
FERREIRA EM
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Alucinações musicais (2007). Mesmo em sua primeira
publicação, o compêndio Enxaqueca (Migraine), de
1970, talvez o seu livro mais academicamente concebido,
Sacks já definia a dor de cabeça de maneira ampla,
como uma janela aberta para fenômenos químicos com
implicações mais profundas do que as determinadas pelo
seu entendimento apenas como uma doença. Segundo
ele, "a partir da aura da enxaqueca, pode-se mapear,
por experiência, exploração e reflexão, todo um mundo
- a cosmografia de um indivíduo".
(8)
São significativas da postura assumida pelo médico
Sacks, na sua prática profissional, as duas epígrafes deste
livro. A primeira, de Robert Burton, diz: "Sócrates, segundo
Platão, não prescrevia remédio para a dor de cabeça de
Cármide sem primeiro acalmar a sua mente tumultuada;
corpo e alma devem ser curados juntos, assim como a
cabeça e os olhos". A segunda, de George Groddeck,
afirma que "Todo aquele que enxergar na doença uma
expressão vital do organismo não mais a verá como um
inimigo. No momento em que percebo que a doença é
uma criação do paciente, ela se torna para mim um
elemento da mesma espécie que sua maneira de andar,
sua expressão facial, os movimentos de suas mãos, os
desenhos que ele fez, a casa que construiu, o negócio
que montou ou os meandros de seu pensamento: um
símbolo significativo dos poderes que o governam e os
quais eu tento influenciar quando julgo acertado".
(8)
No texto dedicado à "aura da enxaqueca", definido
pelo autor como "o maior e mais estranho capítulo de
seu livro", Sacks afirma que o fenômeno aurático deveria
ser o centro de toda investigação que se proponha a
tratar da enxaqueca. Isto, contudo, não é o que ocorre.
Segundo ele, ninguém dá à aura a importância que ela
merece, e quanto mais atual é o livro, menos espaço se
dedica ao tema: "As próprias palavras que empregamos
– enxaqueca clássica em oposição à comum (sendo a
clássica uma enxaqueca com uma aura) – implicam que a
aura é incomum – e misteriosa". Sacks considera falsa
esta interpretação, pois a aura, para ele, está longe de
ser incomum. No entanto, enfatiza que existe uma neces-
sidade vital de boas descrições deste fenômeno, consi-
derado por ele da máxima importância, podendo revelar
muitas coisas não só sobre a enxaqueca em si, mas sobre
os mecanismos mais elementares e fundamentais do
cérebro-mente.
(8)
A dificuldade de se obterem boas descrições deve-
se, segundo ele, à profunda estranheza de muitos desses
fenômenos, que não raro ultrapassam o poder expressivo
da linguagem referencial, além de uma sensação de algo
sobrenatural e amedrontador, que faz a mente recuar só
de pensar no assunto. Nem as descrições sintomáticas
elencadas pelo discurso médico nem os relatos confusos
e imprecisos da maioria dos pacientes parecem dar conta
de estabelecer uma descrição satisfatória do fenômeno.
A literatura e a arte, no entanto, estariam repletas de
exemplos eloquentes e relevantes para um estudo mais
aprofundado do tema. Ao comentar as "alterações da
função integrativa superior", por exemplo, Sacks menciona
alguns sintomas presentes durante uma aura de enxa-
queca, como: a "visão lillitupiana (micropsia), uma apa-
rente diminuição e visão brobdignagiana (macropsia), um
aparente aumento no tamanho dos objetos, embora esses
termos possam também ser usados para denotar a
aparente aproximação ou afastamento do mundo visual –
sendo estas descrições alternativas de alucinações ou
tamanho desordenado –, constância de distância. Se tais
alterações ocorrerem gradualmente em vez de abrupta-
mente, o paciente terá a visão em zoom – o tamanho dos
objetos aumenta ou diminui, como quando eles são
observados através das diversas distâncias focais de uma
lente com zoom. As descrições mais famosas dessas
mudanças de percepção são, obviamente, as deixadas
por Lewis Carroll, que era acometido por impressionantes
enxaquecas clássicas desse tipo" (Figura 3).
(8)
Sacks menciona ainda a "visão em mosaico e
cinematográfica", que designa o fracionamento da ima-
gem visual em facetas irregulares, cristalinas, poligonais,
encaixadas entre si como em um mosaico: "O tamanho
Figura 3. Alice, ilustração
de John Tenniel. O autor
de “Alice no País das
Maravilhas”, Charles
Dodgson (conhecido pelo
pseudônimo de Lewis
Carroll), sofria de
enxaqueca. Há quem
acredite que as
transformações físicas da
personagem Alice são
baseadas nas crises de
enxaqueca de Dodgson,
pois muitos pacientes
descrevem sensações de
distorção de tamanho –
tecnicamente chamadas
micropsia e macropsia
ENXAQUECA E SUA AURA NA GÊNESE DAS VISÕES MÍSTICAS E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA: O CASO DE HILDEGARD VON BINGEN
30 Headache Medicine, v.2, n.1, p.25-32, jan./feb./mar. 2011
das facetas pode variar muito. Quando elas são extre-
mamente diminutas, o mundo visual adquire uma apa-
rência de iridescência cristalina ou ‘granulação’ que lembra
uma pintura pontilhista. Se as facetas se tornarem maiores,
a imagem visual assume a aparência de um mosaico
clássico, ou até mesmo uma aparência ‘cubista’. Se elas
competirem em tamanho com a imagem visual total, esta
não pode mais ser reconhecida, ocorrendo uma peculiar
forma de agnosia visual (Figura 4)".
(8)
Considerando a similaridade destes efeitos com
aqueles produzidos pela pintura vanguardista europeia
do início do século XX, seria possível especular sobre a
possibilidade de os artistas responsáveis por uma nova
ordem na representação do mundo serem portadores
de enxaqueca? Estariam os fenômenos perceptivos
desencadeados pela "aura", de alguma maneira, impli-
cados na deflagração do movimento artístico modernista
na Europa, no período posterior à primeira guerra mun-
dial? E em que circunstâncias, por exemplo, a própria
atmosfera do pós-guerra teria influenciado um suposto
aumento na incidência de enxaquecas e/ou de crises
epilépticas nas populações mais afetadas pelo estresse
pós-traumático resultante dos conflitos de toda ordem
ocorridos naqueles países, naquele momento histórico?
A existência de um hiato entre as ‘duas culturas’, a
científica e a humanista, porém, como aponta Moacyr
Scliar,
(9-11)
dificulta até a formulação de hipóteses como
estas, quem dirá a investigação profunda a respeito:
"Numa conferência na Universidade de Cambridge, em
1959, Charles Peirce Snow lançou um conceito que, não
sendo de todo original, teria, contudo, vasta repercussão.
Trata-se do ‘conceito das duas culturas’, que pode ser
assim sumarizado: entre a cultura científica e a cultura
literária existe um ‘abismo de mútua incompreensão’: os
cientistas não se interessam por literatura, os literatos não
entendem princípios científicos básicos como a segunda
lei da termodinâmica (Snow, 1982:5). O conferencista
tinha credenciais para fazer tal observação; físico por
formação, ensinava em Cambridge, mas era também
novelista e ensaísta de certa reputação. Nas quatro décadas
que se passaram, a crescente especialização só fez
aumentar o hiato descrito por Snow – e as preocupações
em superá-lo".
(9)
Apesar disso, a importância da aura da enxaqueca
vem sendo frequentemente cogitada nos estudos sobre
a gênese de obras de arte não só na modernidade,
mas em épocas bastante remotas. O caso mais surpre-
endente mencionado na literatura talvez seja o da freira
alemã Hildegard von Bingen, nascida em plena Idade
Média.
(12-15)
Segundo os pesquisadores, Hildegard foi uma
criança excepcional, apesar de ter uma constituição física
frágil e de ter suportado graves doenças. Desde cedo,
passou a ter visões que lhe possibilitavam, entre outras
coisas, demonstrar um alto grau de clarividência acompa-
nhada de premonições, pelo menos segundo a inter-
pretação dada ao fenômeno na época. Hildegard afirma
que, em pequena, costumava "ver o que não estava
Figura 4. Os estágios da visão em mosaico conforme experimentados
durante aura de enxaqueca
Além de extremamente eloquentes, os desenhos
feitos pelos pacientes sobre estas experiências evocam
indubitavelmente as características da pintura de certos
movimentos das vanguardas artísticas, como o futurismo,
o expressionismo, o impressionismo e o cubismo. Veja-
se o exemplo dos desenhos do artista esquizofrênico Louis
Wain, citado por Sacks,
(8)
que demonstram certas altera-
ções da percepção que podem ocorrer durante a aura
da enxaqueca. Na Figura 5A, o gato foi retratado sobre
um fundo formado por um aglomerado de figuras seme-
lhantes a estrelas brilhantes. Na Figura 5B, ondas
concêntricas bruxuleantes expandem-se a partir do ponto
de fixação. Na Figura 5C, toda a imagem é transfor-
mada em um padrão de mosaico.
(8)
Para o neurologista,
esses fenômenos são de grande importância, pois nos
mostram como o cérebro-mente constrói as noções de
"espaço" e "tempo", exemplificando o que acontece
quando essas noções são despedaçadas ou desfeitas, o
que justifica a sensação de horror experimentada pelo
doente e, consequentemente, o seu medo em relatar o
fato.
Figura 5. Trabalhos de Louis Wain
FERREIRA EM
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evidente para mais ninguém". Ela mesma faz remontar,
portanto, sua característica ‘visionária’ à infância, muito
embora só tenha iniciado os relatos escritos sobre o
assunto na idade madura. Alguns estudiosos atribuem
suas visões especificamente à ocorrência da enxaqueca
(migrânea), baseando-se na menção, nestes relatos, de
sintomas que são popularmente associados à doença:
distúrbios visuais do tipo cegueira parcial, visão de pontos
luminosos semelhantes a estrelas ou vagalumes, que
brilham e piscam, assumindo eventualmente formas em
ziguezague, e que podem ser estacionários ou mover-se
ao longo do campo visual, afetando um ou ambos os
olhos. Esses sintomas surgiriam cerca de meia hora antes
de um acesso de intensas dores de cabeça, não raro
acompanhadas de náuseas e
vômitos, fotofobia e vertigem.
Haveria inclusive relatos sobre
sensações de formigamento ou
debilidade nos braços e até perda
transitória da visão num ponto
determinado, como um ‘ponto
cego’.
Surpreendente é o modo como
Hildegard traduziu a experiência
desses fenômenos físicos através da
pintura e da escrita, realizando
verdadeiras obras de arte reunidas
num estranho compêndio intitulado
Scivias (abreviatura de Scito vias
Domini – “Conhecer o caminho”) –
seu primeiro livro, no qual registrou
com grande riqueza de detalhes 26 dessas visões. Foi
através desta obra que Hildegard conheceu a
notoriedade e foi aceita como autoridade nos mais
variados assuntos, tanto religiosos quanto relativos ao
comportamento humano e à natureza. Mais do que uma
simples descrição plástica do material visionário, o Scivias
compreende também explicações detalhadas, que são
dadas com o objetivo de esclarecer o sentido das
imagens. Ao longo do livro, Hildegard representa, em
toda sua exuberância e com inconfundível talento artístico,
uma determinada visão, desvendando em seguida seu
significado, afirmando que não o faz por seu próprio
entendimento, mas sim reproduzindo palavras divinas.
Há uma constante passagem da representação
iconográfica à interpretação discursiva nesta obra,
baseada no campo semântico específico da
hermenêutica cristã, através de cujo repertório simbólico
ela encontra sentidos prévios e preconcebidos para expli-
car e interpretar os fenômenos fisiológicos experimen-
tados, que de outra maneira seriam intraduzíveis.
A enxaqueca vem de longe no tempo, asseguram
os especialistas. O manuscrito de Scivias, do século XII,
retrata visões da teóloga Hildegard von Bingen, conside-
radas as primeiras representações iconográficas do
prenúncio da aura. Segundo Oliver Sacks,
(8)
na Figura
6A, o fundo é formado por estrelas bruxuleantes sobre
linhas concêntricas que tremulam. Na Figura 6B, uma
chuva de estrelas brilhantes (fosfenos) passa e se extingue
– uma sucessão de escotomas positivos e negativos. Na
Figura 6C, Hildegarda representa uma figura de forti-
ficação típica de enxaqueca irradiando a partir de um
ponto central.
ENXAQUECA E SUA AURA NA GÊNESE DAS VISÕES MÍSTICAS E DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA: O CASO DE HILDEGARD VON BINGEN
Visionária, escritora, pintora e compositora, Hildegard
von Bingen notabilizou-se ainda como terapeuta,
representando um dos primeiros nomes ligados ao
exercício da medicina na história. Talvez motivada pelos
próprios padecimentos, a genial Hildegard tenha bus-
cado alívio para suas dores e distúrbios físicos e
psíquicos na minuciosa investigação do poder curativo
das ervas, tornando-se uma precursora da terapia
fitoterápica. Seus estudos sobre medicina são descritos
nos livros Physica (1151) e Causae et Curae (1158), ao
longo dos quais Hildegard debruça-se com um olhar
inquiridor sobre a natureza, pesquisando o uso
terapêutico de plantas, aprofundando a tradição
beneditina de manter farmácias e de dar assistência
aos enfermos nos mosteiros. A obra de Hildegard sobre
plantas medicinais escrita em 1158 é, até hoje,
referência da medicina natural. O interesse da abadessa
pela cura das enfermidades reflete sua própria visão
Figura 6. A – "Visão" de Hildegard (século XII), verdadeiro exemplar de iluminura medieval
cristã e documento representativo das alterações perceptivas da aura da enxaqueca, segundo
alguns autores. Fonte: Sacks, Oliver. Enxaqueca. (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).
B e C – outras representações iconográficas
32 Headache Medicine, v.2, n.1, p.25-32, jan./feb./mar. 2011
do homem no mundo, simultaneamente mística e
telúrica, e possivelmente constitui um índice de seu
interesse pessoal pela doença, uma vez que sentia no
próprio corpo os efeitos perturbadores de um mal que
aprendeu a dominar e que subverteu a favor de uma
vida produtiva para si e para o próximo.
Em A literatura e a vida, Gilles Deleuze
(16)
afirma que
não se escreve com as próprias dores. A doença não é
uma passagem de vida, mas um estado em que se cai
quando o processo é interrompido. Para ele, a doença
não é processo, mas parada do processo. Por isso o
escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico,
médico de si mesmo e do mundo: "O mundo é o
conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o
homem. A literatura aparece, então, como um
empreendimento de saúde: não que o escritor tenha
forçosamente uma saúde de ferro, mas ele goza de uma
frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e
ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais,
irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo
devires que uma gorda saúde dominante tornaria
impossíveis".
(16)
A vida e a obra de Hildegard von Bingen ilustram
perfeitamente esta observação, e nos fazem pensar num
futuro onde as ciências exatas, humanas e da saúde
estejam mais interligadas do que isoladas. Através da
comunhão real de conhecimentos hoje ainda tão com-
partimentalizados, talvez seja possível atingir um enten-
dimento mais amplo da existência, capaz de dar conta
de todas as implicações contidas neste surpreendente
comentário do escritor Le Clézio: "Um dia saberão que
não havia arte, mas apenas medicina".
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13. Le Goff J, Schmitt JC. Dicionário temático do Ocidente medieval.
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14. Von Bingen H. Flor brilhante. Lisboa: Assírio e Alvim; 2004.
15. Von Bingen H. Hildegard von Bingen's mystical visions. New
York: Bear and Company; 1995.
16. Deleuze G. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. São Paulo:
Editora 34; 2006. p 143-153.
Correspondência
Dra. Ermelinda Maria Araújo FerreiraDra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Dra. Ermelinda Maria Araújo FerreiraDra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Dra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Centro de Artes e Comunicação, Departamento de Letras,
Universidade Federal de Pernambuco
Av. Prof. Moraes Rego, 1235 – Cidade Universitária
50670-901 – Recife, PE, Brasil
ermelindaferreir@uol.com.br
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