Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013 85
Experiência de ampliação de escuta com utilização
da ferramenta PRACTICE para atendimento
voluntário de paciente com dor orofacial crônica
Expansion of listening experience with use of the PRACTICE tool for
voluntary assistance of patients with chronic orofacial pain
ORIGINAL ARTICLEORIGINAL ARTICLE
ORIGINAL ARTICLEORIGINAL ARTICLE
ORIGINAL ARTICLE
RESUMORESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Justificativa e Objetivos:Justificativa e Objetivos:
Justificativa e Objetivos:Justificativa e Objetivos:
Justificativa e Objetivos: A dor crônica afeta aproxima-
damente 30% da população mundial e exige do médico
considerável perspicácia para efetivar um diagnóstico que
permita estabelecer relações entre as expressões dolorosas
e o que esteja por trás delas. Este trabalho objetiva descrever
a experiência prática de um grupo de estudantes de
medicina, no exercício da ampliação da escuta de pacientes
com dor crônica.
Método: Método:
Método: Método:
Método: Relato de experiência de
estudantes de medicina que foram inseridos numa equipe
multidisciplinar e atenderam, como voluntários, durante mais
de dois anos, pacientes com dor crônica, utilizando como
roteiro das entrevistas a ferramenta PRACTICE.
Resultados:Resultados:
Resultados:Resultados:
Resultados:
A ferramenta PRACTICE se mostrou útil para direcionar a
anamnese, que demandou maior tempo quando comparada
a uma anamnese sem sua utilização. Os estudantes se
consideraram mais preparados para abordar paciente com
dor crônica em sua futura prática profissional.
Conclusão:Conclusão:
Conclusão:Conclusão:
Conclusão:
A ampliação da escuta deve ser valorizada no atendimento
do paciente com dor crônica e deve ser estimulada ainda
no período de formação médica. A ferramenta PRACTICE
pode auxiliar a ampliação da escuta de paciente com dor
crônica.
PP
PP
P
alavrasalavras
alavrasalavras
alavras
--
--
-
chavechave
chavechave
chave
::
::
: Dor crônica; Ferramenta PRACTICE;
Ampliação da escuta
Helen Conceição Moreira Camargos
1
, Karina Viana Brandão
1
, Luiz Paulo Nunes Ferreira Tomaz
1
,
Ariovaldo Alberto da Silva Júnior
2
, Paulo Henrique Faleiro dos Santos
3
1
Discente do 5º ano do curso de Medicina na Universidade José do Rosário Vellano
2
Docente, Doutor em Neurologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
3
Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Camargos HC, Brandão KV, Tomaz LP, Silva Júnior AA, Santos PH. Experiência de ampliação de escuta com
utilização da ferramenta PRACTICE para atendimento voluntário de paciente com dor orofacial crônica.
Headache Medicine. 2013;4(4):85-90
RESUMORESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Background and Objectives:Background and Objectives:
Background and Objectives:Background and Objectives:
Background and Objectives: Chronic pain affects
approximately 30% of the world population and requires
considerable insight to the doctor to confirm a diagnosis which
would establish relations between expressions painful and what
is behind them. This paper aims to describe the experience of
a group of medical students, in enlargement exercise of listening
to patients with chronic pain.
Method: Method:
Method: Method:
Method: Experience report of
medical students who were entered in a multidisciplinary team
and met as volunteers for more than two years, patients with
chronic pain, using series of interviews as the tool PRACTICE.
RR
RR
R
esults:esults:
esults:esults:
esults: PRACTICE proved useful tool to guide the interview,
which required more time when compared to an interview
without their use. Students felt more prepared to address patient
with chronic pain in their future professional practice.
Conclusion:Conclusion:
Conclusion:Conclusion:
Conclusion: The expansion of listening should be considered
for treatment of patients with chronic pain and should be
encouraged even in the period of medical training. PRACTICE
The tool can assist the expansion of listening to patients with
chronic pain.
KeywordsKeywords
KeywordsKeywords
Keywords: Chronic pain; PRACTICE tool; Expansion of
listening
86 Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
Para a Associação Internacional de Estudo da Dor
(IASP),
(1)
a dor se constitui como uma experiência emo-
cional e sensitiva desagradável, associada com uma
lesão tecidual real ou potencial, ou descrita em termos
de tal lesão.
A dor, enquanto sintoma ou até mesmo um sinal,
pode ter diversas causas, o que exige do médico consi-
derável perspicácia para efetivar um bom diagnóstico,
ou seja, um diagnóstico que permita estabelecer relações
entre as expressões dolorosas e o que esteja por trás
delas.
(2)
Estima-se que a dor crônica acometa aproxima-
damente 30% da população mundial, no entanto, sua
epidemiologia ainda é pouco descrita no Brasil.
(3)
Desta
forma, estudiosos do assunto já a consideram um
problema de saúde pública e ensejam maior dedicação
ao seu estudo.
(4)
Observa-se que alguns pacientes com dor crônica,
mesmo adequadamente tratados, com terapia farma-
cológica, não apresentam melhora ou mesmo a apre-
sentam de forma bastante modesta e que estes, em sua
maioria, apresentam sinais e sintomas que lhes conferem
uma demanda de caráter psicossocial. Diante desta
constatação, um grupo de estudantes de medicina, da
Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas-Belo
Horizonte), sob a orientação do professor neurologista
Dr. Ariovaldo da Silva Júnior, decidiram lançar mão da
pesquisa científica no intuito de compreender o mister
que envolve tal fato, até então pouco abordado na
literatura médica, embora já relatado em outras áreas
da saúde.
Sabe-se que o subjetivo, o impalpável, só pode ser
compreendido se soubermos ouvir não apenas no sentido
estrito da palavra, mas ouvir dando significados ao que
se ouve e ao que se vê, pois, é dito que "o corpo fala",
talvez até mais do que é expresso verbalmente.
"Se o corpo não falasse a palavra não teria sentido.
Seria como a fala de um robô, absolutamente
sem expressão."
Gaiarsa
(5)
Para Neubern
(2)
o corpo é assemelhado, pelo mé-
dico, a um laboratório, onde as influências indesejáveis
e subjetivas, capazes de contaminar a validade do saber
médico, são afastadas ou pretensamente controladas.
Corroborando com o autor Stengers,
(6)
que afirmou que
a fala, a emoção, a história e o símbolo ligados à dor
são convertidos (pelo médico) em sinais secundários ou
apenas ignorados em sua complexidade.
Prova da dificuldade da classe médica em saber
ouvir o paciente são os dados de um estudo recente,
publicado no The Journal of the American Medical
Association,
(7)
constatando que 72% dos médicos ameri-
canos interrompem a fala do paciente depois de apenas
23 segundos, em média.
Cientes da responsabilidade dos profissionais da
saúde em abordar adequadamente o paciente portador
de dor crônica, este trabalho propõe-se a descrever a
experiência de um grupo de estudantes de medicina,
inseridos num contexto multidisciplinar, exercitando a
ampliação da escuta direcionada pela ferramenta
PRACTICE.
MÉTODO
Estruturação e dinâmica do Projeto AmbDofEstruturação e dinâmica do Projeto AmbDof
Estruturação e dinâmica do Projeto AmbDofEstruturação e dinâmica do Projeto AmbDof
Estruturação e dinâmica do Projeto AmbDof
De março de 2010 a julho de 2012, uma equipe
multidisciplinar constituída por neurologista, dentistas,
psicólogo, assistente social e acadêmicos de medicina
atenderam, voluntariamente, em ambulatórios, pacientes
com algum tipo de dor crônica, em sua maioria porta-
dores de dor orofacial, formando assim um ambulatório
de estudo da dor (AmbDof). Os atendimentos foram
realizados por meio de encontros mensais no Centro de
Especialização e Treinamento da Odontologia (Cetro-
Unidade Belo Horizonte, Belo Horizonte/MG).
Inicialmente foi realizada entrevista semiestruturada
que investigava semiologicamente o quadro doloroso
do paciente, bem como a presença de hábitos para-
funcionais, como apertamento mandibular, bruxismo,
entre outros. Posteriormente, dentistas realizaram a
palpação muscular pericraniana e cervical destes paci-
entes, procurando pontos álgicos (trigger points). Prosse-
guia-se com avaliação neurológica, por meio da qual
eram adequados os diagnósticos segundo os critérios
da ICDH-2004. Após esta avaliação multiprofissional, a
equipe selecionava casos nos quais percebiam maior
dificuldade de abordagem ou mesmo sinais de demanda
psicossocial, encaminhando-os para uma avaliação mais
ampla, realizada por acadêmicos de medicina, que
efetivaram a escuta destes pacientes fazendo uso da
ferramenta PRACTICE (descrita a seguir), sob a supervisão
de psicólogo e/ou uma assistente social com formação
em psicoterapia.
CAMARGOS HC, BRANDÃO KV, TOMAZ LP, SILVA JÚNIOR AA, SANTOS PH
Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013 87
EXPERIÊNCIA DE AMPLIAÇÃO DE ESCUTA COM UTILIZAÇÃO DA FERRAMENTA PRACTICE PARA
ATENDIMENTO VOLUNTÁRIO DE PACIENTE COM DOR OROFACIAL CRÔNICA
Comunicação: Comunicação:
Comunicação: Comunicação:
Comunicação: Como acontecem as diversas
formas de comunicação entre as pessoas.
TT
TT
T
empo no ciclo de vida:empo no ciclo de vida:
empo no ciclo de vida:empo no ciclo de vida:
empo no ciclo de vida: Correlaciona o proble-
ma com as dificuldades e as tarefas esperadas dentro
das diversas fases do ciclo de vida.
Doenças na família (passadas e presenteDoenças na família (passadas e presente
Doenças na família (passadas e presenteDoenças na família (passadas e presente
Doenças na família (passadas e presente
ss
ss
s
):):
):):
):
Resgata a morbidade familiar e o modo de enfrentamento
nas situações pregressas. Trabalha com a longitudinalidade
do cuidado e a importância do suporte familiar.
Enfrentando o estresseEnfrentando o estresse
Enfrentando o estresseEnfrentando o estresse
Enfrentando o estresse: Como a pessoa/família
lida com o estresse. A equipe parte das experiências ante-
riores e analisa a atual. Identifica fontes de recursos
internos, explora alternativas de enfrentamento se reque-
ridas e interfere se a crise estiver fora de controle.
Ecologia (ou meio ambiente)Ecologia (ou meio ambiente)
Ecologia (ou meio ambiente)Ecologia (ou meio ambiente)
Ecologia (ou meio ambiente): Identifica o tipo
de sustentação familiar e como podem ser usados os
recursos disponíveis. Representada por meio do instru-
mento "ecomapa", um diagrama das relações entre a
família e a comunidade e ajuda a avaliar os apoios e
suportes disponíveis e sua utilização pela família.
Deste modo, o PRACTICE objetivou direcionar a
ampliação da escuta dos pacientes, o que foi facilitado
pelos profissionais da área psicossocial que
oportunamente interviam na entrevista, a fim de pontuar
situações nas quais percebiam necessidade de maior
esclarecimento e aprofundamento.
Critérios utilizados para finalizar aCritérios utilizados para finalizar a
Critérios utilizados para finalizar aCritérios utilizados para finalizar a
Critérios utilizados para finalizar a
experiênciaexperiência
experiênciaexperiência
experiência
Após cada dia de atendimento, os alunos, conjun-
tamente com o psicólogo e com a assistente social, faziam
discussões crítico-reflexivas acerca dos casos atendidos,
pontuando as visões de cada um sobre o caso, bem como
as dificuldades encontradas na exploração da(s) queixa(s).
Muitas vezes, os alunos foram também submetidos à escuta
ampliada, no contexto de trazer à tona suas questões
pessoais que se manifestavam direta ou indiretamente em
sua condução das anamneses e/ou em suas reações frente
aos conteúdos apresentados pelos pacientes.
Com o decorrer do tempo, visto que a experiência
adquirida pelos alunos já os deixavam confortáveis o
suficiente para abordar o paciente de maneira mais
integral, os profissionais envolvidos e os estudantes, em
comum acordo, decidiram finalizar o período de
experiência clínica e compartilhá-la com a comunidade
científica. Ao refletir sobre a riqueza do aprendizado
adquirido, pensou-se na melhor maneira de transmiti-lo,
a fim de incentivar ações semelhantes.
A ferramenta PRACTICEA ferramenta PRACTICE
A ferramenta PRACTICEA ferramenta PRACTICE
A ferramenta PRACTICE
O PRACTICE8 é um instrumento que funciona como
um roteiro para obtenção de informações, focado na
resolução de problemas. Cada letra significa uma área
de investigação. Todos os acadêmicos envolvidos no
Projeto AmbDof foram previamente familiarizados com
a ferramenta e treinados para sua utilização como
instrumento direcionador da anamnese.
O PRACTICE, portanto, nada mais é senão um
mnemônico cujas letras, derivadas do inglês, significam:
Para Gusso et al.
(8)
o PRACTICE geralmente é usado
em conferências familiares, porém, no contexto deste
estudo, a ferramenta foi utilizada como direcionador na
entrevista de pacientes, que, em sua maioria, partici-
pavam da consulta desacompanhados. Desta forma
abordou-se em cada atendimento:
Problema:Problema:
Problema:Problema:
Problema: Como o paciente percebe, define e
enfrenta o problema atual (por exemplo, sua dor).
PP
PP
P
apéis e estrutura:apéis e estrutura:
apéis e estrutura:apéis e estrutura:
apéis e estrutura: Aprofunda aspectos do
desempenho dos papéis de cada um dos familiares e
como eles evoluem a partir dos seus posicionamentos.
Afeto:Afeto:
Afeto:Afeto:
Afeto: Como se estabelecem as trocas de afeto entre
os membros e como esta troca reflete e interfere no
problema apresentado.
88 Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013
Delineamento do tipo de estudo paraDelineamento do tipo de estudo para
Delineamento do tipo de estudo paraDelineamento do tipo de estudo para
Delineamento do tipo de estudo para
divulgação dos resultadosdivulgação dos resultados
divulgação dos resultadosdivulgação dos resultados
divulgação dos resultados
A natureza deste objeto impôs a adoção dos preceitos
metodológicos do estudo qualitativo que, de acordo com
Pope & Mays,
(9)
está relacionado aos significados que as
pessoas atribuem às experiências do mundo social e como
o compreendem. Tenta interpretar os fenômenos sociais
em termos dos sentidos que as pessoas lhes dão.
Diferente da pesquisa quantitativa, os métodos
qualitativos consideram a comunicação do pesquisador
em campo como parte explícita da produção de
conhecimento, em vez de simplesmente encará-la com
uma variável a interferir no processo. A subjetividade do
pesquisador, bem como dos sujeitos do estudo, tornam-
se parte do processo de pesquisa (Flick).
(10)
Além disso,
as pesquisas qualitativas fazem emergir aspectos subje-
tivos e atingem motivações não explícitas, ou mesmo
conscientes, de maneira espontânea. Estes aspectos nos
levaram a usar como instrumento de coleta de dados a
entrevista semiestruturada focalizada, uma vez que ela
permite obter dados, opiniões sobre tema bem definido
e explicitamente delimitado.
(11)
No total foram quatro
estudantes que permaneceram até o final do Projeto e
concordaram em relatar suas experiências, procedendo
a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido (TCLE), de acordo com as determinações da
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
(Brasil, 1996), a qual discorre sobre o respeito devido à
dignidade humana. Neste trabalho, fez-se cumprir ainda
o direito do anonimato, omitindo-se os nomes dos entre-
vistados e foram
descritos apenas seus relatos.
Os dados das entrevistas foram organizados de acordo
com os pressupostos de pesquisa qualitativa apontados por
Minayo
(12)
: leituras e releituras de cada entrevista a fim
familiarizar com o conteúdo expresso e, assim, estabelecer
uma compreensão dos dados coletados, confirmando ou
não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às questões
formuladas e ampliar o conhecimento sobre o assunto
pesquisado. Procedeu-se então o pinçamento das unidades
de registro, relendo-as quantas vezes se fizeram necessárias
no intuito de apreender o sentido latente e expresso nelas
para uni-las por convergência e formar as unidades
temáticas de análise.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A entrevista com os acadêmicos, que participaram
do projeto AmDof, constou das seguintes questões:
1) Descreva como foi a sua experiência de atendi-
mento aos pacientes no ambulatório do CETRO. O que
mais lhe chamou atenção nesse processo?
2) O que é ampliação de escuta para você?
3) Sua experiência no atendimento ao paciente com
dor crônica, utilizando o PRACTICE, foi diferente em
algum aspecto quando comparado à sua anamnese em
outros ambulatórios nos quais não a utilizou? Se sim, em
que diferiu?
4) Você acredita que esta prática da ampliação da
escuta auxiliará em sua futura prática profissional? Se
sim, como?
A análise compreensiva permitiu localizar na fala
dos entrevistados as unidades de registro que Minayo
(12)
diz referir-se aos elementos obtidos através de decom-
posição do conjunto da mensagem.
As unidades de registro foram obtidas por meio do
pinçamento central das respostas de cada pergunta e
foram agrupadas de acordo com a similaridade de seus
conteúdos, que receberam um título abrangente para
caracterizar a ideia geral das respostas.
Os estudantes demonstraram, por meio de suas
falas, que a experiência de atendimento aos pacientes
no ambulatório de dor foi positiva, o que lhes permitiu
ampliar a escuta, compreender o paciente em sua
totalidade e os ajudaram a criar uma visão crítica sobre
a anamnese tradicional:
1) Aprender a ouvir o outro:
"Foi uma experiência ímpar, na qual pude dedicar meu
tempo para ouvir, mas ouvir de verdade."
"Chamou-me atenção o quanto que as pessoas
precisam falar, expressar seus sentimentos, e como que
somos carentes do ouvir em nossa sociedade."
2) Compreender o paciente em sua totalidade:
"Me permitiu ver o paciente como um ser humano
único, fragilizado por sua dor, inserido em um contexto
biopsicossocial, e com uma história de vida impregnada
de valores culturais, espirituais e sociais.”
"Acho que o que mais me chamou atenção foi como
cada um de nós enfrenta ou simplesmente vive e convive
com a dor de maneiras diferentes."
3) Questionar a anamnese tradicional
"O que mais me chamou atenção foi a falta de
sensibilidade e a estruturação desnecessária que durante
a formação médica adquirimos."
Sabe-se que a medicina foi fundamentada no
estudo dos componentes biológicos do corpo para
CAMARGOS HC, BRANDÃO KV, TOMAZ LP, SILVA JÚNIOR AA, SANTOS PH
Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013 89
construir suas teorias, elaborar seus diagnósticos e
determinar seus tratamentos.
(13)
Assim, o século XIX foi
marcado por um processo de rápido desenvolvimento
do saber, no qual houve uma supervalorização do
método científico. Isso, na medicina, implicou em incon-
testáveis avanços, mas trouxe consigo certo esquecimento
de seu lado humanístico que agora se faz ressurgir. Para
Cassel,
(14)
a tarefa da medicina no século XXI será a
descoberta da pessoa, descobrindo as origens da doença
e do sofrimento e com este conhecimento desenvolver
métodos para o alívio da dor, e, ao mesmo tempo,
revelar o poder da própria pessoa.
Ao serem questionados quanto ao conceito de
ampliação de escuta, os estudantes a definiram como:
saber ouvir em profundidade e considerar os aspectos
biopsicossociais do paciente.
1) Ouvir em profundidade
"É ir além do que o paciente nos conta. É ouvir e
saber explorar em profundidade o que é contado."
"Enxergar através das entrelinhas do discurso verbal
e não verbal do paciente."
2) Considerar aspectos biopsicossociais do paciente
"É ter uma visão holística, não apenas ouvir a
queixa física do paciente e sim conhecê-lo melhor e
ver que por trás de um sintoma há uma realidade
psíquica e espiritual individualizada, que interage com
seu meio ambiente, sociedade e cultura da sociedade
na qual está inserido."
"É conseguir atender o paciente na sua integralidade,
observando as peculiaridades individuais de cada um."
De modo geral, os estudantes consideraram a
ferramenta PRACTICE como útil e facilitadora do processo
de ampliação da escuta, embora aumente o tempo da
consulta:
"Com o PRACTICE ao alcance dos olhos durante a
anamnese eu me sentia mais segura e não esquecia de
abordar os aspectos biopsicossociais do paciente, o que
nem sempre fazemos numa consulta comum."
"Observei que o tempo de atendimento em uma
consulta, utilizando o PRACTICE, é maior, porém o
paciente se sente acolhido e acredita mais no tratamento."
"A ferramenta PRACTICE em minha opinião possi-
bilita conectar informações que poderiam passar des-
percebidas, contribuindo para o diagnóstico e trata-
mento. Utilizá-lo é de suma importância para garantir
qualidade de vida e em última análise ter a sensibilidade
de intervir no fator complicador e perpetuador da
referida dor."
"Aprofundamos nos aspectos psicossociais em
detrimento dos aspectos puramente biológicos, tentando
ao fim correlacioná-los."
Os acadêmicos que participaram do projeto consi-
deraram que a experiência da ampliação da escuta será
um fator diferencial em suas formações e que certamente
os auxiliará na futura prática profissional e apontaram
como aspectos positivos: maior segurança na abordagem
do paciente, redução do número de consultas, diferen-
ciação no mercado de trabalho e facilitação do diag-
nóstico etiológico da dor. Exemplos:
1) Maior segurança na abordagem do paciente:
"Sinto-me bem mais segura em abordar o paciente e
sempre reservo um tempinho da anamnese para explorar
estas questões de como o paciente lida com seu problema,
tento encontrar coincidências entre suas queixas e sua
história de vida, seus problemas pessoais...(...) o vínculo
que formamos é muito maior."
2) Redução do número de consultas
"Ao desprender um tempo maior na consulta, permite
compreender o contexto em que o paciente está inserido,
podendo desta forma realizar a melhor conduta, evitando
assim que o paciente retorne várias vezes ao atendimento."
3) Diferencial no mercado de trabalho
"A familiarização com a ampliação de escuta será
com certeza um diferencial importante para o atendimento
clínico profissional. (...) tendo em mente, que a medicina
também é uma arte, saber conectar, a sensibilidade da
escuta atenta ao paciente (...); fica claro que ter participado
do projeto contribuiu de sobremaneira para formação de
uma opinião sólida sobre a necessidade de médicos que
tenham este perfil, já que atualmente são escassos."
4) Facilitação do diagnóstico etiológico da dor
"Se aprendermos a deixar o paciente falar, ele nos
dará toda a informação necessária, seja por meio do
discurso ou por linguagem corporal. Uma vez feito isso,
saberemos o que perguntar e identificaremos de forma
mais fácil o "gatilho" da dor do paciente e não apenas
tratar a consequência da mesma, mas sim a causa."
A integralidade é um dos princípios doutrinários do
Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição
desde 1988. E embora, desde então, o Brasil tenha se
esforçado por fazê-lo cumprir, ainda há muito que se
fazer para que a pessoa doente não seja vista sob a
ótica reducionista das subespecialidades. Para se alcançar
uma visão completa do sujeito adoecido e assim,
EXPERIÊNCIA DE AMPLIAÇÃO DE ESCUTA COM UTILIZAÇÃO DA FERRAMENTA PRACTICE PARA
ATENDIMENTO VOLUNTÁRIO DE PACIENTE COM DOR OROFACIAL CRÔNICA
90 Headache Medicine, v.4, n.4, p.85-90, Oct./Nov./Dec. 2013
compreender a causa dessa(s) doença(s) o médico
necessita de habilidades de comunicação para fazer uma
leitura global do contexto daquela doença, considerando
o que o paciente expressa, verbalmente ou não.
Sobre isso, Helman (1994) apud Caprara & Franco
(15)
trazem que, em se tratando dos padrões de comunicação
verbal e não verbal, assim como a variedade de padrões
comunicacionais, são muitos os problemas que surgem
na relação médico-paciente destacando-se: a dificuldade
de compreensão, por parte do médico, das palavras
utilizadas pelo paciente para expressar a dor, o sofrimento;
a falta ou a dificuldade de transmitir informações
adequadas ao paciente; a dificuldade do paciente na
adesão ao tratamento. Desta forma, o PRACTICE se mostra
como um facilitador do processo de aprofundamento da
escuta, mas não exclui a necessidade de um treinamento
do profissional para a captação da linguagem corporal
do paciente, o que permitirá uma melhor compreensão
do problema apresentado.
CONCLUSÃO
Percebe-se surgir um novo cenário da medicina, no
qual o paciente é reconhecido como principal instrumento
de cura, exercendo papel fundamental no sucesso do
seu próprio tratamento. Desta forma, vê-se a construção
de uma nova relação médico-paciente, no qual o médico
se colocará cada vez mais como facilitador ou orientador
do processo de autocura, ombreando com o paciente a
responsabilidade de buscar sempre a origem e o trata-
mento para sua doença. Assim sendo, saber ouvir e
interpretar sua linguagem verbal e corporal, bem como
compreender o contexto social, cultural e ambiental no
qual se insere o sujeito adoecido, se faz de suma
importância para se exercer a medicina do século XXI.
A integralidade do cuidado parece ser viabilizada
pelo atendimento conjunto multiprofissional. A ferramenta
PRACTICE somada à orientação de profissionais da área
psicossocial se mostrou como facilitadora do processo
de ampliação da escuta.
Diante de tais fatos, conclui-se que a escuta
ampliada deve ser valorizada no atendimento do paciente
com dor crônica e certamente também naqueles com
outras afecções à saúde. Sua estimulação, ainda no
período de formação médica, se mostra um diferencial
importante, que contribui para maior segurança e
humanização no atendimento, interferindo positivamente
na relação médico-paciente e facilitando assim o cuidado
integral ao sujeito adoecido.
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Correspondência
Helen Conceição Moreira CamargoHelen Conceição Moreira Camargo
Helen Conceição Moreira CamargoHelen Conceição Moreira Camargo
Helen Conceição Moreira Camargo
Núcleo de Pesquisa UNIFENAS
Rua Líbano, 66 – Bairro Itapoã
31710-030 – Belo Horizonte, MG
Tel.:(31)3497-4300 - email: helencamargos@oi.com.br
CAMARGOS HC, BRANDÃO KV, TOMAZ LP, SILVA JÚNIOR AA, SANTOS PH
Received: December 2, 2013
Accepted: December 20, 2013