6 Headache Medicine, v.7, n.1, p.6-10, Jan./Feb./Mar. 2016
Anatomia e arte: união necessária como o corpo e a
alma
Anatomy and art: a necessary union such as that of the body with the soul
Manuela Figueiroa Lyra de Freitas, José Jaílson Costa do Nascimento
2
, Marcelo Moraes Valença
1
1
Universidade Federal de Pernambuco, Cidade Universitária, Recife, Pernambuco, Recife, Brasil
2
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil
Freitas MFL, Nascimento JJC, Valença MM. Anatomia e arte: união necessária como o corpo e a alma.
Headache Medicine. 2016;7(1):6-10
HUMANIDADES
INTRODUÇÃO
Anos atrás criamos um espaço na nossa revista cientí-
fica Headache Medicina destinado à neuroarte e decidi-
mos em cada capa da revista colocar uma ilustração re-
presentando algum aspecto relacionado com cefaleia, seja
do ponto de vista científico ou expressando algum tipo de
arte plástica. Nesta edição estamos homenageando o co-
lega anatomista Eulâmpio José da Silva Neto, cuja obra
artística muito revela da aflição que nossos pacientes so-
frem com esta afecção muitas vezes crônica que é a cefaleia,
principalmente quando estamos diante da migrânea e suas
comorbidades psiquiátricas como a ansiedade, depressão,
pânico e um limiar mais baixo para dores em outras regi-
ões do corpo.
GRANDES ANATOMISTAS - GRANDES ARTISTAS
O olhar do anatomista e do artista percebem coisas
que muitos não vêem, pois acham que os anatomistas são
frios, no entanto, somos sensíveis, como poucos, porque
enxergamos a alma em um ser morto, porém, está vivo em
várias recordações e sentimentos de muitos entes queridos
e vivos, constituindo assim, uma dor chamada SAUDADE.
"Não faço arte para decorar ambientes. Ela não é só para embelezar.
A arte deve ser trabalhada para nos levar a pensar sobre tudo que nos rodeia e que está dentro de
nós. Experimento-a levado por uma força interna, incontida,
que ordena e manipula a exteriorização do objeto.
Através da arte, grito coisas que não consigo falar"
Eulâmpio José da Silva Neto
A anatomia foi fonte de inspiração para grandes artis-
tas renascentistas do século XV, como Leonardo da Vinci
(1452-1519) e Michelangelo Buanorotti (1475-1564),
artistas anatomistas que exploraram o corpo humano para
produzirem suas obras, grandes gênios. Leonardo da Vinci
teve sua obra marcada pela riqueza de detalhes, era mais
realista e respeitava as proporções anatômicas, tinha mai-
or afinidade por obras de pintura. Michelangelo, um dos
mais talentosos artistas plásticos da história, gostava de
retratar esculturas em formas exageradas, foi um artista
consciente de seu grande talento.
PROFESSOR E ARTISTA PLÁSTICO EULÂMPIO
JOSÉ DA SILVA NETO
Foi falando da dor que este professor e artista, Eulâmpio
José da Silva Neto, iniciou um de seus experimentos, aquele
da alma, que como diz, surge de dentro e vai para fora,
aflora, como pensamento, e se concretiza nas mãos do
escultor, nobre escultor, eclético escultor, que faz da sua
obra, também seu momento inquieto, de todo o descone-
xo, entre homem, ser pensante e sensitivo.
Suas mãos hábeis não só dissecam, a mais bela arte
do Criador, o corpo humano, mas revela com as mesmas
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mãos em barro e terra, sentimentos de um extremo furor.
Quão belas as esculturas delas, das mãos poéticas do es-
cultor, eximem arte, destreza, proeza e amor. Amor por algo
que ainda vai criar, mas que se tornará sua expressão mais
profunda de captação de elementos invisíveis, pois são sen-
tidos e muitas vezes não ditos.
A dor humana é algo misterioso, é uma dor sem
mensuração, a causa não pode ser só uma, mas uma his-
tória, uma revolta, uma paixão, uma decepção, um so-
nhar, um simples existir.
Se existo crio, sonho e faço:
Com argila faço o que acho que passa nas emoções;
Capto do silêncio de um cadáver;
O que passou em sua mente;
Sombria mente;
Que um dia já pensou;
Em coisas belas;
Tristezas e desamores;
Sonhou;
Por isso esculpo na terra o sentimento da dor;
A dor pode ser minha; pode ser sua e pode ser nossa;
Quando só minha, é loucura, é acaso;
Quando junta, com a de outrem, ou por outrem;
Passa a ser mais minha, prisão desvairada, que tenho
que libertar toda a energia, captada de volta ao
seu lugar;
Para isso uso o corpo, que se expressa sem falar;
Daí vem não só o artista, mas o anatomista, que com
perfeição e arte;
Parte para a obra finalizar;
Inicialmente sem forma sem contexto, até com desprezo;
Começa-se a criar, depois uma agonia de quem
sempre cria;
De que algo não está bom;
Tem que melhorar;
Depois o alívio, a paixão e a necessidade de fazer;
E com o conhecimento filosófico e anatômico passo a
tecer;
As experiências de vida e que vejo na vida para o meu
novo ser criatura/escultura;
Onde coloco em linhas duras e delicadas,
as impressões ósseas, os tendões e músculos e suas
fáscias a revestir;
Órgãos e vasos e tudo que posso tecer;
Teço com a agulha de um mestre da escultura,
minhas mãos;
As mãos também falam, assim como, a expressão do
corpo e da face e de todo o ser;
Momentos estes que fico até sem braços,
falo eu, escultura;
E outros, onde até mesmo me abraço, com a minha
solidão, com a minha depressão, ansiedade e
indecisão;
Só posso dizer que, sem a arte não haveria
compreensão do que se passa no interior, mais guardado,
de uma alma e de um coração;
Pois não me controlo, apenas ponho para fora toda a
emoção, captada com a mais alta perfeição.
Estas palavras foram escritas com as mãos, mas vie-
ram das emoções após contemplar as esculturas do profes-
sor anatomista/artista plástico que homenageamos na capa
da Headache Medicine.
Eulâmpio José da Silva Neto, nasceu no Recife-PE no
dia 13 de dezembro de 1961, terceiro filho de Lourival
José da Silva e Irene Maria Castelo Branco. Cursou Medi-
cina Veterinária na Universidade Federal Rural de Pernam-
buco (UFRPE). Cursou Mestrado em Anatomia Veterinária
na Universidade de São Paulo (USP) e Doutorado em Ci-
ências Naturais (Anatomia de Vertebrados), na Universida-
de de Tuebingen, Alemanha. Em Tuebingen, também cur-
sou técnica escultória em madeira. Lecionou Anatomia
Veterinária na UFRPE e atualmente é Professor de Anato-
mia Humana da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Continuou seu treinamento no âmbito das artes plásticas,
realizando o curso de técnicas escultóricas em argila com
o professor Ilson Morais em João Pessoa, PB em 2008. Isso
resultou em algumas exposições e publicações, entre elas
citamos:
Pathos das Dores e das Loucuras, 6 de fevereiro
a 6 de março, Casarão 34, João Pessoa/PB, exposição
conjunta (Selecionado em edital de ocupação 2008/9 do
Casarão 34);
Pathos das Dores e das Loucuras, 2 a 31 de maio
de 2009, Livraria Cultura Recife, Paço da Alfândega -
Recife, PE;
Pathos das Dores e das Loucuras, 13 a 31 de
julho de 2009, Centro de Cultura Amalry de Carvalho -
Patos, PB;
Coletânea Paraibana, 26/08 a 4/11/2009, Es-
tação Cabo Branco - Ciência Cultura e Artes, exposição
coletiva, João Pessoa, PB;
Pathos das Dores e das Loucuras
(parte II), 10/10
a 16/11/2009, Pinacoteca da UFPB - Biblioteca Central
da UFPB, exposição individual, João Pessoa, PB;
Por que Sapatos, 05 a 30/11/2009, Centro Cul-
tural são Francisco, exposição coletiva, João Pessoa, PB;
ANATOMIA E ARTE: UNIÃO NECESSÁRIA COMO O CORPO E A ALMA
8 Headache Medicine, v.7, n.1, p.6-10, Jan./Feb./Mar. 2016
Lançamento do livro Meu Ser, 2 de dezembro, na
Livraria Esquina da Letras, Zarinha Centro de Cultura, João
Pessoa, PB;
Lançamento do livro Meu Ser, 6 de dezembro,
Faculdade Santa Maria, Cajazeiras, PB;
Lançamento do livro Meu Ser, 28 de abril, Livra-
ria Cultura, Paço Alfândega - Recife, PE;
Transgressões Capitais - 1 a 20/09/2011, Esta-
ção Cabo Branco - Ciências, Cultura e Artes, João Pes-
soa, PB (Exposição individual - Selecionada pelo edital da
Funjope 2010).
E é sobre Pathos das Dores e das Loucuras que va-
mos mostrar um pouco do artista que há, neste anatomista.
Que desde criança já convivia, com a arte através de seus
desenhos, e que, escondido e com a alma de um menino
a sonhar, levava para a sala de aula alfinetes para em um
giz trabalhar. Esculpia este giz como uma brincadeira, que
hoje, já escultor, faz sua arte brilhar.
Traz na sua bagagem a leitura de poesias, as quais
diz gostar das mais fortes, do poeta Augustos dos Anjos,
que mais adiante o inspirou a criar obras para outra expo-
sição.
Na Alemanha e com os filósofos que costuma ler:
Friedrich Wilhelm Nietzsche e Martin Heidegger, também
alemães. Ao som de Mozart e com grande conhecimento
de Anatomia Veterinária e Humana e o calor do nosso Nor-
deste com o turbilhão de sentimentos que só a alma poéti-
ca, eclética e séria, porém alma, com sentimentos, usa as
mãos para expressar, em material bruto, do qual surge um
ser oculto, que chamamos de escultura, mas, que o seu
nome será dito ao final, pelo autor, reflexo de tudo o que se
passa, no interior e exterior, do mundo do nobre artista es-
cultor e professor das formas do corpo humano.
Pathos das Dores e das Loucuras:
O que podemos falar sobre as lindas obras
““A Solidão” (Figura 1) – o escultor relata que
demonstraa coluna vertebral como elemento solitário. E a
própria escultura se abraça, como buscando conforto,
carinho em si mesma. O artista destaca nesta vista o mús-
culo latíssimo do dorso, a espinha da escápula e mãos
grandes, que sugere a necessidade de um amplo abraço
para aplacar a dor, indecifrável dor. Será apenas solidão?
Na obra “Angústia” (Figura 2), dor tão devastadora
que consome energia vital, o artista mostra a pele flácida
do rosto, desconfigurado, olhos como se ausentes, talvez
a angústia nem tenha olhos nesta arte, e não enxergam
nada, além desta dor pungente. Mostra a proeminência
laríngea, músculos e tendões do pescoço, mãos proporci-
onais, porém mostrando nitidamente as articulações
interfalângicas flexionadas, dizendo é dor, é só minha,
assim como a solidão, meu psiquê.
A dor materializada na obra: “Remorso” (Figura 3),
talvez um somatório de dores, presas na mente, no cére-
bro, na cabeça, que as mãos tentam aplacar, diminuir.
Figura1. “Solidão”, 2008 (Terracota)
Figura 2. Angústia”, 2008
(Terracota)
As obras “Aflição” (Figura 4) e “Culpa” (Figura 5)
também expressam sentimentos; a primeira gera uma dor
inexplicável, o indivíduo fica com a boca aberta, olhos
caídos, mãos sustentam a cabeça, de forma torta, pois
não sabem o motivo. A culpa coloca seu capacete, como
que em um soldado que vai à guerra, na verdade, o pró-
prio indivíduo se automutila, carregando a dor da culpa,
dor sua, culpa às vezes de outros. Quantas dores podemos
ter? Várias da mente que se refletem no funcionamento dos
órgãos. Cefaleia, dor terrível de muita gente, o que se pode
fazer?
Figura 3. “Remorso”, 2008 (Terracota)
FREITAS MFL, NASCIMENTO JJC, VALENÇA MM
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Figura 4. “Aflição”, 2008 (Terracota)
Figura 5. “Culpa”, 2008 (Terracota)
Outras obras (Figuras 6 e 7) que refletem outras dores
ocultas.
Figura 8. “Desassossego”, 2008 (Terracota)
faz com que desencadeie muitas dores, físicas e morais.
Da “Loucura(Figura 9) não sei se há dor no ser, talvez
doa mais em que olha e convive, ou no louco haja outras
dores, mas não da loucura, insanidade, que transforma a
face, alheia ao mundo, desconexa, ou a mente está presa
em um filme que passa apenas no cinema da mente do
louco, artista, protagonista de cenas que ele idealiza e
participa ao seu modo, ao seu tempo. E por isso muitos
tipos de loucura (Figura 9 e 10).
Figura 9. “Loucura”, 2008
(Terracota)
Figura 10. “Loucura 2”, 2008
(Terracota)
Em oposto, a “Felicidade” (Figura 11), que nessa es-
cultura também revela a dor, talvez de alguém que sorri,
mas não de alegria, sobrancelhas arqueadas e aproxima-
das, lembrando a loucura. Esta dor parece ser instigante,
pois faz sorrir, promove algo da criação de uma mente.
Seria um sorriso sarcástico. Nesta obra percebemos bem a
anatomia da mandíbula e maxilas bem esculpidas, o na-
riz bem retocado, os olhos expressivos, nos parece até o
retrato de um cadáver.
Figura 6. “Paixão”, 2009
(Terracota)
Figura 7. “Ira”, 2009 (Terracota)
Agora, outras esculturas (Figuras 8, 9 e 10) e nestas
podemos notar a ausência de membros. O que será que o
artista/anatomista que transmitir?
A do “Desassossego” (Figura 8), parece ser uma
dor terrível, daquelas em que o indivíduo não dorme,
não faz nada bem, vive sob tensão, sobre alerta, e este alerta
10 Headache Medicine, v.7, n.1, p.6-10, Jan./Feb./Mar. 2016
Correspondência
Manuela Figueiroa Lyra de Freitas
manuelaflf@uol.com.br
Duas Obras Preferidas do artista/anatomista
Eulâmpio Neto, a “Decepção” (Figura 12) e a “Incerte-
za” (Figura 13).
Figura13. Incerteza, 2008 (Terracota)
Interessante que também gostamos muito desta obra,
pois revela com perfeição a anatomia do crânio, ao reba-
ter pele, fáscias e músculos. Pois assim é esta dor terrível
da decepção. Indivíduo, às vezes, perde a fome, o sono, a
motivação, a depender da decepção, pode-se até falecer.
Que dor! Mas que bela escultura para retratá-la.
Das esculturas do autor, esta é feminina, vítima princi-
pal da dor da incerteza. De um alimento, na dor da fome;
de carinho, na dor dos medos; no abrigo, na dor de onde
criar seu filho, na dor de nutrir sua criança, que com suas
mamas sem leite, sentirão a dor da fome. Mãe e filho, com
dores da desnutrição, várias dores, além da incerteza.
Desta forma, usamos algumas fotos das esculturas de
Eulâmpio Silva Neto na capa desta edição, expressão de
arte que tanto representa o sofrimento de nossos pacientes
com cefaleia.
"Tenho mais influência de Michelangelo, pelo fato dele ser
escultor. Embora minha linha seja diferente, gosto de valorizar
a anatomia nas minhas esculturas e também de usar torções que
embelezem, mesmo que a escultura que eu esteja fazendo não
tenha a beleza como principal característica.
É como colocar o belo em uma figura feia."
Eulâmpio José da Silva Neto
REFERÊNCIA
Página pessoal do artista Eulâmpio José da Silva Neto
(Oficial) http://www.eulampio.com.br/
Recebido: 25 de março de 2016
Aceito: 25 de março de 2016
Figura 11. Felicidade, 2008 (Terracota)
Figura 12. Decepção, 2008 (Terracota)
FREITAS MFL, NASCIMENTO JJC, VALENÇA MM