34 Headache Medicine, v.8, n.2, p.34-37, Apr./May/Jun. 2017
Cefaleia e abstinência de alimentos
Headache and abstinence from food
Adriana Almeida Soares
1
, Raimundo Pereira Silva-Néto
2
1
Nutricionista, Centro de Neurologia e Cefaleia do Piauí, Teresina, Brasil
2
Neurologista, Universidade Federal do Piauí, Teresina, Brasil
Soares AA, Silva-Néto RP. Cefaleia e abstinência de alimentos. Headache Medicine. 2017;8(2):34-7
VIEW AND REVIEW
RESUMO
Objetivo: Esta revisão objetivou investigar a ação da
abstinência alimentar no desencadeamento de cefaleia.
Método: Foram revisados os critérios diagnósticos e fa-
tores desencadeantes de todas as cefaleias descritas na
ICHD-3β. Resultados: A ingestão e abstinência alimen-
tar são consideradas fatores alimentares envolvidos no
desencadeamento dos ataques de cefaleia. A ingestão de
alguns alimentos desencadeia ataques de cefaleia ape-
nas nas cefaleias primárias, dentre elas, migrânea e
cefaleia do tipo tensional. No entanto, a abstinência ou
supressão alimentar causam cefaleias secundárias, tais
como cefaleia atribuída ao jejum e à supressão de cafeí-
na. O jejum também é um gatilho da migrânea. Conclu-
sões: A abstinência alimentar é considerada um impor-
tante gatilho dos ataques de cefaleia. Além disso, esta
cefaleia melhora significativamente após a ingestão de
alimentos.
Palavr as-chave : Jejum; Abstinência alimentar; Cafeí-
na; Cefaleia
INTRODUÇÃO
A abstinência (do latim "abstinere", formado por "ab",
afastamento; e "tinere", manter, segurar) alimentar é o ato
de abster-se da ingestão de determinado tipo de alimento,
em prol de algum objetivo, como, por exemplo, religioso,
político ou médico. Vale ressaltar que essa decisão de abster-
se é, muitas vezes, forçada.
Há um tipo específico de abstinência alimentar, o
jejum (do latim "jejunus", vazio, sem nada), que é defini-
do como a abstinência parcial ou total de alimentos,
durante certo período do dia, em geral, por greve de
fome, penitência ou prescrição religiosa
(1,2)
ou médica.
Estar em jejum é estar sem ingerir nenhum alimento por
longas horas.
Quando um indivíduo não se alimenta por longos
períodos, interrompe, adia ou diminui a dose de determi-
nada substância que usava há algum tempo, como, por
exemplo, a cafeína, será acometido de cefaleia.
(3)
Em relação à cefaleia deflagrada pelo jejum, a pro-
babilidade de sua ocorrência aumenta com a duração do
jejum e é mais comum em pacientes com migrânea.
(4)
CEFALEIA ATRIBUÍDA AO JEJUM
Na International Classification of Headache
Disorders, Third Edition (ICHD-3β),
(5)
existe um grupo de
cefaleias atribuídas a transtornos da homeostase. No
subgrupo codificado como 10.5, há a cefaleia atribuída
ao jejum (Tabela 1), mas que não preenche os critérios
diagnósticos para migrânea, pois esta última também apre-
senta cefaleia induzida por hipoglicemia. Quando o di-
agnóstico for de migrânea sem aura, o jejum será um
fator precipitante.
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A cefaleia atribuída ao jejum é descrita como sen-
do difusa, não pulsátil e, geralmente, de leve a mode-
rada intensidade. Ela é causada pelo jejum de, pelo
menos, 8 horas e ocorre durante esse período. À medi-
da que aumenta a duração do jejum, aumenta a pro-
babilidade de desenvolvimento de cefaleia atribuída ao
jejum.
(6)
Esta cefaleia é, significativamente, mais comum em
indivíduos com história pregressa de migrânea. Quando
existe o diagnóstico concomitante de migrânea, a cefaleia
pode assemelhar-se à da migrânea sem aura.
A cefaleia atribuída ao jejum parece não estar relaci-
onada com duração do sono, interrupção da ingestão de
cafeína ou hipoglicemia. Embora a cefaleia possa ocorrer
dentro das condições de disfunção cerebral induzida pela
hipoglicemia, não há evidências conclusivas para susten-
tar uma relação causal.
A cefaleia atribuída ao jejum pode ocorrer na ausên-
cia de hipoglicemia e a hipoglicemia induzida por insuli-
na não desencadeia cefaleia em indivíduos migranosos.
Por outro lado, a cefaleia não é uma queixa habitual de
pacientes que procuram os serviços de emergência com
hipoglicemia sintomática.
Motivos religiosos. O jejum religioso está associa-
do com cefaleia e um dos exemplos típicos é a cefaleia de
Yom Kippur, observada durante o jejum de 25 horas prati-
cado pelos judeus,
(7,8)
conforme descrito em um estudo
prospectivo em que 39,0% dos praticantes desse ritual
desenvolveram cefaleia, em média, 16 horas após o iní-
cio do jejum.
(9)
O Yom Kippur, conhecido como o Dia do Perdão, é
uma das datas mais importantes do judaísmo. Os judeus,
tradicionalmente, comemoram esse feriado com um perí-
odo de jejum de 25 horas e oração intensa. No calendá-
rio judaico, esse dia começa no crepúsculo do 10º dia do
mês hebreu (coincidindo com setembro, outubro ou no-
vembro do nosso calendário) e termina no pôr-do-sol do
dia seguinte.
(11)
Outro exemplo de cefaleia atribuída ao jejum é a
aquela observada entre os muçulmanos durante o pri-
meiro dia do Ramadã (do árabe "ramida", que significa
"ser ardente", devido ao jejum ser celebrado no período
mais quente do ano). No Ramadã, o 9º mês do calen-
dário islâmico, o jejum com duração de, aproximada-
mente, um mês é uma prática obrigatória para os mu-
çulmanos.
(10)
Na Grécia, existe uma montanha denominada Mon-
te Athos, constituída de uma entidade política autônoma,
governada pela Igreja Ortodoxa Grega e que abriga vinte
mosteiros greco-ortodoxos. Os monges que habitam o
Monte Athos, habitualmente, praticam jejum e há relato
de que apresentam cefaleia atribuída ao jejum.
(11)
Na maioria dos pacientes, a cefaleia atribuída ao
jejum apresenta-se com as mesmas características clínicas
da cefaleia do tipo tensional (CTT) e sua probabilidade de
ocorrência aumenta à medida que se prolonga a absti-
nência de alimentos.
(12)
Conduta nutricional. O tratamento da cefaleia atri-
buída ao jejum baseia-se no retorno à ingestão do ali-
mento. Ela é aliviada quando o paciente ingere algum
alimento.
(6)
MIGRÂNEA
Migrânea, também chamada de enxaqueca, é uma
doença neurológica crônica, com uma prevalência no
Brazil, de 15,2%.
(13)
É definida como uma reação neuro-
vascular anormal que ocorre num organismo genetica-
mente vulnerável. Exterioriza-se, clinicamente, por episó-
dios recorrentes de cefaleia e manifestações associadas
dependentes de fatores desencadeantes.
(14)
Esses fatores desencadeantes podem ser identificáveis
e, na maioria das vezes, múltiplos para um mesmo paci-
ente. Dentre eles, são referidos, mais frequentemente,
estresse, alterações hormonais, privação ou excesso de
sono, esforço físico e estímulos sensoriais, como lumino-
sidade, barulho e odores.
(15,16)
Além desses, estão os fato-
res alimentares, como jejum prolongado e ingestão de
determinados alimentos ou bebida alcoólica.
(17)
Considera-se jejum prolongado um tempo superior
a quatro horas de abstinência alimentar e ocorre, habi-
tualmente, quando o indivíduo abstém-se de uma das
refeições.
(6)
De todos os fatores alimentares, o jejum é um
dos gatilhos mais frequentes e melhor caracterizados em
pacientes com migrânea e que nem sempre pode ser evi-
tado.
(17,18)
Sua prevalência, ao longo da vida, é em tor-
no, de 4,0%.
(19)
Um estudo avaliou 2.313 ataques espontâneos de
cefaleia em 1.883 pacientes com migrânea. O jejum pro-
longado foi fator precipitante das crises em 67,0% desses
pacientes, mas, curiosamente, menos de 5,0% deles per-
cebiam o jejum como um gatilho de suas crises.
(20)
Ao se avaliar o efeito do jejum, durante o Ramadã,
na população muçulmana com migrânea, constatou-se
aumento na frequência dos ataques de migrânea quando
comparado com o mês seguinte, o controle, sem nenhu-
ma atenuação naqueles que usavam tratamento
profilático.
(10)
CEFALEIA E ABSTINÊNCIA DE ALIMENTOS
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SOARES AA, SILVA-NÉTO RP
É evidente que a prevenção desta cefaleia é a orien-
tação ao paciente migranoso para que ele não permane-
ça grandes períodos sem ingerir qualquer alimento. No
entanto, há pesquisas sobre o desenvolvimento de uma
abordagem preventiva eficaz. Devido à sua longa meia-
vida, o frovatriptano vem sendo utilizado como tratamento
preventivo da migrânea induzida por jejum.
(18)
Os mecanismos fisiopatológicos pelos quais o jejum
prolongado induz cefaleia em pacientes com migrânea
ainda não foram bem esclarecidos. Possivelmente, esses
mecanismos tenham ligação com o metabolismo do
glicogênio cerebral e sua modulação pela atividade sim-
pática.
(17)
Supõe-se que o suprimento insuficiente de glicose,
derivada do glicogênio no início da atividade sináptica
intensa, pode levar a um desequilíbrio entre os terminais
excitatórios e inibitórios, causando despolarização coleti-
va dos neurônios. Isso pode ativar aferentes trigeminais
perivasculares, abrindo canais neuronais pannexin 1, e
iniciar vias inflamatórias parenquimatosas.
(17)
O jejum prolongado ocasionará hipoglicemia. Com
isso, o cérebro, que tem a glicose como principal fonte de
energia, será incapaz de funcionar adequadamente. Em
resposta, o organismo aumentará o fluxo sanguíneo cere-
bral e os tecidos nervosos se tornarão mais sensíveis à
dilatação dos vasos sanguíneos, gerando assim um ata-
que de migrânea.
Conduta nutricional. Nos pacientes migranosos,
em que o jejum prolongado é um gatilho da cefaleia, é
fundamental alimentar-se a cada três ou quatro horas,
com refeições moderadas, para diminuir a frequência das
crises. Recomenda-se que esses pacientes levem sempre
um lanche consigo, caso não seja possível fazer suas re-
feições na hora prevista. Esse lanche poderá ser uma fruta
ou uma barra de cereal.
CEFALEIA DO TIPO TENSIONAL
A cefaleia do tipo tensional (CTT) é o tipo mais co-
mum de cefaleia. Segundo a ICHD-3β,
(5)
ela pode ser
dividida em três subtipos de acordo com a frequência da
cefaleia: CTT episódica infrequente (< 12 dias de cefaleia
por ano); CTT episódica frequente (12 a 180 dias de
cefaleia por ano); e CTT crônica (> 180 dias de cefaleia
por ano). A prevalência, ao longo da vida, de CTT
episódica é de quase 80,0%, e de CTT crônica, 3,0%.
Caracteriza-se por crises de cefaleia, predominan-
temente bilaterais, de leve a moderada intensidade, ge-
ralmente descritas como sendo em pressão ou aperto
(não pulsátil), com duração de horas a dias e que não
pioram com a atividade física rotineira, como, por exem-
plo, caminhar ou subir escadas.
Dentre os fatores desencadeantes da CTT são conhe-
cidos estresse, cansaço, excesso de exercícios físicos,
ingestão de bebida alcoólica, distúrbios do sono etc. Não
há dúvidas de que o estresse, tanto físico como psicológi-
co, seja o fator mais implicado.
(21)
Quanto ao ato de per-
manecer em jejum prolongado, é consenso na literatura,
de que se tratar de um fator precipitante para ataques de
migrânea, mas é também para CTT.
(4,22)
Em um estudo em que 91 pacientes foram acompa-
nhados prospectivamente, 37 (41,0%) desenvolveram
cefaleia com características clínicas de migrânea (9%;
8/91) ou CTT (32%; 29/91). Dos oito indivíduos que
relataram um ataque de migrânea, seis tinham história de
migrânea; dos 29 indivíduos que relataram um ataque de
CTT, 26 tinham história de CTT. A maioria dos ataques
exibiu características semelhantes à cefaleia que eles ge-
ralmente experimentaram.
(2)
Realizou-se um estudo na Índia, durante o Ramadã,
com 2.982 pacientes e observou-se que 67,0% desenvol-
veram CTT e 14,0%, migrânea.
(23)
CEFALEIA ATRIBUÍDA À SUPRESSÃO DE CAFEÍNA
Na ICHD-3β,
(5)
existe um grupo de cefaleias atribuí-
das à retirada de substâncias. No subgrupo codificado
como 8.3.1, há a cefaleia atribuída à supressão de cafe-
ína (Tabela 2), que é descrita como uma cefaleia que se
desenvolve dentro de 24 horas após o consumo regular
de cafeína acima de 200 mg/dia, por mais de duas se-
manas e que foi interrompido. Resolve-se, espontanea-
mente, dentro de sete dias, na ausência de consumo adi-
cional.
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Correspondência
R. P. Silva-Néto
Universidade Federal do Piauí
Avenida Frei Serafim, 2280, Centro
64001-020 – Teresina, PI Brasil
Tel. + 55 863215-5696
E-mail: neurocefaleia@terra.com.br
Recebido: 05 de janeiro de 2017
Aceito: 15 de fevereiro de 2017
A cafeína tem como principal fonte o café, mas, tam-
bém, é encontrada em outras bebidas, porém em menores
proporções, tais como, chá preto, chocolate, refrigerantes
do tipo cola, guaraná etc. Alguns analgésicos comuns, de-
rivados da ergotamina e antiinflamatórios não esteroides
usados no tratamento abortivo das cefaleias também con-
têm cafeína, variando de 30 a 100 mg por comprimido.
(24)
As pessoas que consomem essa substância numa quan-
tidade superior a 200 mg/dia, por mais de duas semanas
e suspendem-na, abruptamente, desenvolvem cefaleia den-
tro de 24 horas após seu último consumo.
(25)
É uma cefaleia
vaga e pobre em sintomas associados.
(26)
A dor é aliviada
em menos de uma hora, pela ingestão de 100 mg de
cafeína e desaparece dentro de sete dias, após sua inter-
rupção completa.
(24)
Conduta nutricional. Estes pacientes devem ser ori-
entados a não suspender abruptamente a cafeína.
CONCLUSÕES
A abstinência alimentar é considerada um importante
gatilho dos ataques de cefaleia. Além disso, esta cefaleia
melhora, significativamente, após a ingestão de alimentos.
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