Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011 89
Fibromigrânea: uma nova denominação para
uma velha doença?
Fibromigraine: a new name for an old disease?
RESUMORESUMO
RESUMORESUMO
RESUMO
Fibromialgia e migrânea são doenças comuns que acome-
tem predominantemente mulheres e compartilham mecanis-
mos fisiopatológicos semelhantes. Revisamos aspectos
fisiopatológicos em relação aos mecanismos de controle da
dor e disfunção neuroendócrina que ocorrem na fibromialgia
e na migrânea. Discutimos também a participação de cen-
tros hipotalâmicos e do tronco cerebral no controle da dor, o
suposto papel desempenhado pelos neurotransmissores ou
neuromoduladores na sensibilização central, e suas altera-
ções no líquido cefalorraquidiano. Lançamos o conceito de
ser uma única doença a combinação da migrânea com a
fibromialgia (que chamamos de fibromigrânea). Em um es-
tudo preliminar envolvendo 41 mulheres com migrânea, 4
subgrupos foram analisados: controle só com migrânea,
pacientes com migrânea e fibromialgia clássica
(fibromigrânea), e outros dois grupos quando apenas um
dos dois critérios da fibromialgia foi contemplado, como
migrânea associada com dor crônica corporal por mais de 3
meses (fibromialgia parcial com poucos pontos dolorosos) e
migrânea associada com hiperalgesia difusa (fibromialgia
parcial sem dor corporal crônica). Houve uma frequência
maior de alodinia cefálica, fadiga, distúrbios humor e do
sono no grupo com fibromigrânea em relação ao grupo só
com migrânea. Concluímos que há um continuum entre
migranosos sem hiperalgesia generalizada ou dor corporal
crônica por mais de 3 meses e aqueles com a fibromigrânea.
ARTIGO DE REVISÃOARTIGO DE REVISÃO
ARTIGO DE REVISÃOARTIGO DE REVISÃO
ARTIGO DE REVISÃO
Louana C. Silva
1
, Daniella A. Oliveira
1
, Hugo A. L. Martins
1
, Fabiola L. Medeiros
2
, Lúcia C. L. Araújo
1
Waldmiro A. D. Serva
1
, Joaquim J. S. Costa Neto
1,2
, Paloma L. Medeiros
1
, Simone C. S. Silva
1
Marise F. L. Carvalho
1
, Maria da Conceição Sampaio
1
, Tânia C. M. Couceiro
1
, Jane A. Amorim
1
Michelly C. Q. Gatis
1
, Larissa P. B. Vieira
1
, Clara A. Pereira
1
, Raimundo Pereira da Silva Neto
1
,
Roberta P. Souza
2
, Luciana P. A. Andrade-Valença
2
, Mario F. P. Peres
3
, Marcelo M. Valença
1
1
Unidade Funcional de Neurologia e Neurocirurgia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil
2
Serviço de Neurologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil
3
Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, Brasil
Silva LC, Oliveira DA, Martins HA, Medeiros FL, Araújo LC, Serva WA, Costa Neto JJ, Medeiros PL,
Silva SC, Carvalho MF, Sampaio MC, Couceiro TC, Amorim JA, Gatis MC, Vieira LP, Pereica CA,
Silva-Neto RP, Souza RP, Andrade-Valença LP, Peres MF, Valença MM.
Fibromigrânea: uma nova denominação para uma velha doença?. Headache Medicine. 2011;2(3):89-95
Nas mulheres com migrânea a presença de síndrome
fibromiálgica aumenta a frequência de fadiga, distúrbios do
sono e humor e alodinia tátil cefálica.
KK
KK
K
eywords:eywords:
eywords:eywords:
eywords: migrânea, fibromialgia, fisiopatologia, dor.
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACTABSTRACT
ABSTRACT
Fibromyalgia and migraine are common disorders that
predominantly affect women and seem to share the same
pathophysiological mechanisms. We reviewed common
aspects of the pathophysiology regarding pain control
mechanisms and neuroendocrine dysfunction occurring in
fibromyalgia and migraine. We also discuss the participation
of hypothalamic and brainstem centers of pain control, the
putative role played by neurotransmitters or neuromodulators
on central sensitization, and changes in their levels in the
cerebrospinal fluid. Because of the reasons exposed we could
start considering the combination of two diseases -
fibromigraine - as an individual clinical condition considered
a different disorder from those found in patients suffering of
migraine or fibromyalgia separately. In a preliminary study
involving 41 women with migraine, 4 subgroups were
analyzed: control (migraine alone), patients with migraine
and fibromyalgia (fibromigraine), and other two groups when
only one of the two criteria of fibromyalgia was observed, as
migraine associated to chronic corporal pain during more
than three months (partial fibromyalgia with just a few painfull
90 Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011
SILVA LC, OLIVEIRA DA, MARTINS HA, MEDEIROS FL, ARAÚJO LC, SERVA WA, ET AL
INTRODUÇÃO
A fibromialgia é uma doença crônica que está pre-
sente em mais de 4% da população, afetando mais
mulheres que homens.
1,2
Sua etiologia ainda é desco-
nhecida, porém parece haver influência de fatores gené-
ticos e ambientais. As características clínicas da
fibromialgia são dor e rigidez músculo-esquelética,
muitas vezes associadas à depressão, fadiga, distúrbi-
os do sono, alterações no humor, ansiedade, diminui-
ção da motivação e problemas de concentração. Al-
gumas comorbidades, como migrânea, síndrome do
intestino irritável e transtornos depressivos, parecem com-
partilhar os mesmos mecanismos fisiopatogênicos da
fibromialgia.
3
Fibromialgia e migrânea apresentam si-
nais e sintomas comuns, além de aspectos fisiopato-
lógicos semelhantes, particularmente quando conside-
ramos mecanismos de controle da dor e disfunção
neuroendócrina.
Estima-se que a prevalência de cefaleia em pacien-
tes com fibromialgia seja alta sendo a migrânea a mais
frequente com valores entre 45% e 80%.
4
No sentido in-
verso observa-se que a fibromialgia está presente em
33% dos pacientes com cefaleia.
5
A combinação de
fibromialgia e migrânea está associada com menores
escores de qualidade de vida e níveis aumentados de
desordens mentais.
6
DISFUNÇÕES NEUROENDÓCRINAS
Pacientes com fibromialgia apresentam disfunções
neuroendócrinas e do sistema nervoso autônomo. Tanto
a fibromialgia quanto a migrânea cursam com dor ge-
neralizada e aumento da sensibilidade dolorosa, que
são resultantes de alterações no processamento central
points) and migraine associated with diffuse hyperalgesia
(partial fibromyalgia without any chronic corporal pain).
There was a greater frequency of cephalic allodynia, fati-
gue, disorders of mood and sleep in the group with
fibromigraine in relation to the group with migraine alone.
We concluded that there is a continuum between individuals
with migraine and those with fibromigraine. In women with
migraine the presence of fibromyalgia syndrome increases
the frequency of fatigue, disorders of mood and sleep and
tactile cephalic allodynia.
PP
PP
P
alavrasalavras
alavrasalavras
alavras
--
--
-
chave:chave:
chave:chave:
chave: Migraine; Fibromyalgia; Physiopatology;
Pain.
de estímulos sensoriais. Esses mecanismos de sensibi-
lização central são, também, influenciados pela ansie-
dade e por alterações no sono.
5,7
Estudos
8-14
mostram que pacientes com fibromialgia
apresentam alterações no sistema nervoso central, com
concentrações anormais de neurotransmissores, neuro-
peptídeos e neuromoduladores, alterações no eixo
hipotálamo-hipófise-adrenal e alterações morfológicas
da substância cinzenta cerebral. Isso indica fortemente
ser a fibromialgia uma doença primária do encéfalo.
Há fortes indícios que pacientes com fibromialgia
apresentem um desequilíbrio entre mecanismos excita-
tórios e inibitórios do controle da dor, decorrente do com-
prometimento do sistema modulatório da dor no sistema
nervoso central. Esse desequilíbrio leva a uma percep-
ção inadequada tanto de estímulos ambientais como de
estímulos internos.
15
O diagnóstico da fibromialgia é dado pelo preen-
chimento de dois critérios: (1) dor generalizada com du-
ração superior a três meses e (2) sensibilidade à palpação
em determinados pontos.
16
A dor é uma sensação desagradável que sinaliza
ao organismo a existência de algum dano tecidual para
ser reparado. Uma dor de cabeça, por exemplo, pode,
ocasionalmente, sinalizar uma condição clínica grave que
requeira uma atenção médica imediata, podendo a dor
ser decorrente de insultos como no exemplo da hemor-
ragia intracraniana.
Com relação às cefaleias primárias, esse papel de
alerta ainda não está completamente esclarecido. Um
dos principais fatores desencadeantes da migrânea é o
estresse emocional, seguido por estímulos olfativos, visu-
ais e auditivos, privação do sono e privação alimentar.
17
Observa-se assim a vulnerabilidade dos migranosos à
sobrecarga sensorial durante e entre as crises de
migrânea.
18
Foi observado que pacientes com fibromialgia apre-
sentam fonofobia e percepção olfatória alterada.
19,20
Essa
percepção alterada sugere que as respostas neurais
aferentes estão amplificadas. Pacientes com migrânea e
fibromalgia apresentam aumento da atividade de algu-
mas regiões cerebrais em resposta a estímulos táteis e
térmicos, principalmente em regiões responsáveis pelo
processamento sensorial discriminativo.
20-22
Evidências
sugerem que pacientes com fibromialgia ou cefaleia crô-
nica diária apresentem disfunção no mecanismo de aler-
ta, o que os torna mais sensíveis a estímulos normalmen-
te indolores, tais como tato, frio, calor, luz, sons e chei-
ros.
Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011 91
FIBROMIALGIA E ESTRESSE
Pacientes suscetíveis a fibromialgia podem desen-
volver a doença quando expostos a agentes estressores
psicossociais e ambientais, visto que esses podem levar
a alterações na percepção da dor ou na sua inibição.
Aqueles que já apresentam a doença em sua forma clás-
sica podem ter a sintomatologia exacerbada por situa-
ções de estresse, o que vem a reforçar o papel do estresse
na fisiopatogênese da fibromialgia.
3,23
Alguns fatores de risco da esfera psicológica são
encontrados em pacientes com fibromialgia, como even-
tos negativos na vida, maior preocupação com sintomas
corporais, e outros transtornos psicológicos. Nesse senti-
do, mulheres com fibromialgia referem maior quantida-
de de situações negativas durante a infância e a adoles-
cência.
24
Cohen e colegas
25
avaliaram 77 pacientes com
fibromialgia e observaram que mais da metade apre-
sentava níveis significativos de sintomas de transtorno de
estresse pós-traumático. No estudo de Amital e colegas
26
foram avaliados 55 homens com transtorno de estresse
pós-traumático desencadeado por acontecimentos que
envolveram morte, lesão grave ou ameaça a própria
integridade física ou a de terceiros durante combates
militares. Observou-se que em 49% destes diagnosticou-
se fibromialgia. Isso reforça que a fibromialgia se
desenvolve como uma resposta biológica ao estresse.
Em condições normais, o sistema nervoso autôno-
mo e o neuroendócrino preparam o organismo para
reações de fuga ou de luta diante de situações de risco
iminente. Em algumas condições o hipotálamo age ime-
diatamente para que sejam aumentados os níveis san-
guíneos do hormônio adrenocorticotrófico, β-endorfinas,
cortisol, ocitocina e adrenalina.
27,28
Alguns desses
hormônios, em situações de estresse, podem causar alí-
vio da dor aguda. Dessa forma, a presença da dor po-
deria ser uma maneira do sistema nervoso central sinali-
zar no caso do organismo estar exposto a um ambiente
potencialmente prejudicial.
DISFUNÇÃO HIPOTALÂMICA NA
FIBROMIALGIA
Evidências apontam disfunção do hipotálamo em
pacientes com fibromialgia, particularmente envolvendo
o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal
29
e o eixo hipotá-
lamo-hipófise-hormônio do crescimento,
30
porém testes
endócrinos de rotina encontram-se normais nestes paci-
entes. Observou-se que pacientes com fibromialgia apre-
sentam anormalidades no eixo hipotálamo-hipófise em
resposta ao estresse e aumento nos níveis de neuro-
peptídeos, de aminoácidos excitatórios e de neurotrofinas
no liquido cefalorraquidiano (LCR),
7-9,13,30
o que refor-
ça, assim como na migrânea, a sua origem central.
O hipotálamo se conecta a substância cinzenta
periaquedutal, ao locus coeruleus e aos núcleos da rafe,
sendo esses todos envolvidos na regulação autonômica,
do sono bem como sobre o controle dos mecanismos de
percepção da dor. O hipotálamo também exerce gran-
de influência nos mecanismos que desencadeiam dor
de cabeça.
31
Durante uma crise de cefaleia, quando há
envolvimento de estruturas hipotalâmicas, espera-se que
a dor seja concomitante a mudanças no padrão de se-
creção hormonal.
32
Em casos de lesão ou disfunção do
hipotálamo, a cefaleia pode ser atribuída a estes danos.
O hipotálamo e o tronco cerebral representam uma com-
plexa rede neuronal interconectada, responsável por
características cronobiológicas e autonômicas, e pela
lateralização de algumas formas de dores de cabeça.
33
Anormalidades no funcionamento do hipotálamo
podem originar alguns sinais e sintomas prodrômicos da
migrânea, como alterações de humor, sonolência, dese-
jo alimentar, sede e bocejos. Trabalho realizado por Giffin
e colegas
34
mostrou que dos 97 pacientes estudados,
72% apresentavam sintomas premonitórios preditivos de
migrânea e dentre estes sintomas os mais frequentes eram:
sensação de cansaço e fadiga (em 72% das crises), difi-
culdades de concentração (51%) e rigidez nucal (50%).
Esses sinais e sintomas podem surgir algumas horas ou
até mesmos dois dias antes do início da dor de cabeça,
ou podem persistir durante toda a crise. Porém, nem toda
fase premonitória progride para migrânea. Em uma sé-
rie de 839 pacientes migranosos foram encontrados como
sinais premonitórios mais comuns: cansaço, alterações
do humor e sintomas gastrointestinais.
35
Fadiga, alterações de humor, disfunções cognitivas
e dor músculo-esquelética são queixas referidas tanto por
pacientes com fibromialgia como pelos migranosos.
Questionamos se essas queixas apresentadas por ambas
as doenças teriam origem na mesma região cerebral?
Haveria falha no sistema de analgesia endógeno
na fibromialgia?
Em situações estressantes, o sistema endógeno de
analgesia é ativado para suprimir a dor. Os mecanis-
mos de modulação da dor são regulados por substân-
cias endógenas que ora agem exacerbando a dor, ora
criando um estado de analgesia ou mesmo até inibindo
a dor. Entre essas substâncias, os opióides endógenos
FIBROMIGRÂNEA: UMA NOVA DENOMINAÇÃO PARA UMA VELHA DOENÇA?
92 Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011
são os que exercem maior influência sobre o sistema de
alívio da dor. O estudo de Vaeroy e colaboradores
36
mostrou que a concentração de β-endorfinas no LCR de
pacientes com fibromialgia não foi diferente do contro-
le. Porém, seria esperado um aumento da concentração
deste peptídeo no LCR em condições de dor crônica con-
tínua, uma vez que se espera um papel analgésico exer-
cido pela endorfina. Questionamos se a ausência de
resposta indicaria uma deficiência no sistema de analgesia
endógeno em pacientes com fibromialgia?
ATROFIA CORTICAL E DOR CRÔNICA
Recentemente, muito se tem estudado sobre a asso-
ciação entre dor e alterações da morfológicas cerebrais,
principalmente pelo fato de haver diminuição da massa
cinzenta em pacientes com dor crônica.
37
Quanto maior
o tempo de expressão da sintomatologia da fibromialgia,
maior a perda de substância cinzenta, principalmente em
regiões associadas ao controle da dor e estresse, como
o cíngulo, a ínsula, o córtex fronto-medial, o giro para-
hipocampal e o tálamo, o que corrobora a noção de
que a fibromialgia é uma doença relacionada ao estresse
e à sensibilização das vias da dor do sistema nervoso
central.
Fibromialgia e migrânea podem compartilham ca-
racterísticas fisiopatológicas hereditárias. Parece haver um
polimorfismo dos genes dos sistemas serotoninérgicos,
dopaminérgicos e catecolaminérgicos na fibromialgia.
38
Assim, pode-se observar diminuição dos metabólitos da
serotonina, dopamina e noradrenalina no LCR de paci-
entes com fibromialgia.
10
Durante crises de migrânea podem ocorrer alodinia
cefálica e extracefálica como sinal de sensibilização sen-
sorial. Dor corporal e alodinia associadas a crises de
migrânea são fenômenos relatados por alguns pacien-
tes. Estudo realizado por Cuadrado e colegas
39
relatou
que três pacientes apresentavam dor corporal
concomitante aos episódios de migrânea; geralmente a
corpalgia era ipsilateral a dor de cabeça e persistia de
minutos a dias. Também foi encontrada alodinia a estí-
mulos mecânicos sobre áreas dolorosas.
HEMIFIBROMIALGIA
Recentemente, nós identificamos uma condição do-
lorosa em um homem com 54 anos denominada por
nós como "hemifibromialgia", pois o paciente referia dor
em todo o hemicorpo esquerdo, com a presença de
alodinia tátil em todos os nove tender points do lado
esquerdo. Também foi diagnosticada uma cefaleia
cervicogênica à esquerda. A fibromialgia no hemicorpo,
associada à cefaleia cervicogênica ipsilateral, surgiu após
uma situação de estresse durante uma internação hos-
pitalar. Esse paciente ainda se queixava de dificuldades
para dormir e depressão. Isto mostra que é possível a
existência de sensibilização central lateralizada, conside-
rando que houve restrição da sintomatologia a apenas
um hemicorpo. Com infiltração com anestésico associa-
do com dexametasona houve regressão não só da
cefaleia cervicogênica como também da "hemifibro-
mialgia".
Alguns autores hipotetizam que a fibromialgia repre-
senta o final de um spectrum de dor e tender points e que
ambas as características provavelmente são contínuas na
população em geral. Dessa maneira, uma síndrome
dolorosa miofascial pode evoluir para fibromialgia.
40
Os mecanismos da alodinia e da hiperalgesia ain-
da são desconhecidos, porém evidências sugerem que
muitos níveis do sistema nociceptivo estejam envolvidos,
tanto neurônios periféricos como centrais. A causa da
hipersensibilidade à dor parece estar ligada à sensi-
bilização central dos neurônios nociceptivos da raiz
dorsal.
41
O glutamato parece estar relacionado à cronificação
da migrânea e está envolvido na depressão alastrante
cortical, na ativação trigeminovascular e na sensibilização
central. Altos níveis de glutamato e de neurotrofinas fo-
ram encontrados no LCR de pacientes com migrânea
crônica e fibromialgia.
42
Essas substâncias desempenha-
riam um papel no mecanismo de sensibilização central
na dor crônica.
FIBROMIALGIA SECUNDÁRIA A LESÃO
ESTRUTURAL DO TRONCO CEREBRAL
Alguns pacientes que tiveram dano cerebral e apre-
sentaram alterações no funcionamento do tronco cere-
bral desenvolveram sintomatologia semelhante a
fibromialgia, o que demonstra o papel dessa estrutura
no desenvolvimento da doença. Também há relatos de
sintomas migranosos em paciente com malformação
vascular pontina, sugerindo que lesões no tronco cere-
bral podem dar início a dor crônica.
43
Ifergane e cola-
boradores
44
relataram o caso de uma mulher de 42 anos
que, após hemorragia pontina, desenvolveu tanto
migrânea como fibromialgia. Um outro estudo
45
mos-
trou que quadro de fibromialgia pode ser secundário à
SILVA LC, OLIVEIRA DA, MARTINS HA, MEDEIROS FL, ARAÚJO LC, SERVA WA, ET AL
Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011 93
compressão da medula a nível cervical ou região cau-
dal do tronco cerebral. Esses autores recomendam que
pacientes com fibromialgia passem por um exame neu-
rológico minucioso, acompanhado de exames de
neuroimagem a fim de se excluir a mielopatia cervical.
O tratamento cirúrgico da mielopatia cervical em
uma série de 40 pacientes com diagnóstico inicial de
fibromialgia resultou em melhora significativa dos sinto-
mas atribuídos à fibromialgia. Esse fato fortifica a hipó-
tese de que a fibromialgia pode ser o resultado de um
dano ou disfunção no tronco cerebral ou na medula
cervical alta.
Fatores desencadeantes como estresse, lumino-
sidade, barulho, entre outros, podem ativar centros es-
pecíficos do tronco cerebral. O conceito de sensibilização
central bem como periférica como parte da patogênese
da migrânea é uma teoria recente,
46
que tenta explicar o
sintoma da alodinia cutânea e o desenvolvimento da
migrânea crônica.
FIBROMIALGIA "PARCIAL"
Para o diagnóstico da fibromialgia dois critérios são
contemplados [i.e. =11/18 tender points (hiperalgesia
generalizada) associados com história de dor corporal
por pelo menos três meses]. Porém, a prática tem mos-
trado que além da fibromialgia conceitual (presença dos
dois critérios, que chamamos fibromialgia clássica) ha-
veria uma forma parcial da fibromialgia que se expres-
saria de duas maneiras: presença de dor corporal crôni-
ca sem existência de tender points ou hiperalgesia gene-
ralizada e/ou alodinia sem dor corporal crônica. Seriam
essas duas formas de fibromialgia "parcial" uma fase
que antecederia a fibromialgia clássica?
FIBROMIGRÂNEA
Migrânea frequentemente é comorbidade da fibro-
mialgia, associação essa que denominamos como
fibromigrânea.
47
Migranosos apresentam um maior nú-
mero de tender points quando comparados com não
migranosos, além de se notar uma maior susceptibilida-
de à dor por apresentarem um menor limiar ao estímulo
nociceptivo. Em pacientes com fibromialgia, fadiga, dis-
túrbios do sono e do humor e depressão são frequen-
tes.
47
Em um estudo preliminar envolvendo 41 pacientes
com migrânea, 4 subgrupos foram analisados: (1) con-
trole só com migrânea, (2) pacientes com migrânea e
fibromialgia clássica ou conceitual (fibromigrânea), e
outros dois grupos quando apenas um dos dois critérios
da fibromialgia foi contemplado (i.e. fibromialgia par-
cial), (3) migrânea associada com dor crônica corporal
por mais de 3 meses (fibromialgia parcial com poucos
pontos dolorosos, PPD) e (4) migrânea associada com
hiperalgesia difusa (fibromialgia parcial sem dor corpo-
ral crônica presença de 11 tender points, SDCC).
Houve uma freqüência maior de alodinia cefálica,
fadiga, distúrbios e do humor e do sono (Figura 1) no
grupo com fibromigrânea em relação ao grupo só com
migrânea.
Figura 1. Percentagem de pacientes com fadiga (A), com distúrbio do
sono (B), com distúrbio do humor (C) e com alodinia cefálica (D).
Todas eram mulheres migranosas. PPD, fibromialgia parcial com
poucos pontos dolorosos; SDCC, fibromialgia parcial sem dor corporal
crônica
Concluímos com este estudo que há um continuum
entre indivíduos migranosos sem hiperalgesia generali-
zada ou dor corporal crônica por mais de 3 meses e
aqueles com a fibromigrânea (migrânea + fibromialgia).
Assim, nas mulheres com migrânea a presença de
FIBROMIGRÂNEA: UMA NOVA DENOMINAÇÃO PARA UMA VELHA DOENÇA?
94 Headache Medicine, v.2, n.3, p.89-95, Jul./Aug./Sep. 2011
síndrome fibromiálgica aumenta a frequência de fadi-
ga, distúrbios do sono e humor e alodinia tátil cefálica.
CONCLUSÕES
Fibromialgia e migrânea compatilham característi-
cas clínicas e demográficas, provavelmente havendo um
mecanismo fisiopatológico comum para ambas, com
disfunção no sistema nervoso central. A hipótese atual se
apóia nas conhecidas anormalidades encontradas no
processamento sensorial, principalmente no eixo hipo-
tálamo-tronco cerebral. Diante do exposto, poderíamos
começar a considerar a combinação das duas doenças
– fibromigrânea – como uma condição clínica individu-
al. Nós postulamos um espectro de progressão entre
migrânea episódica, evoluindo para migrânea com
alodinia, migrânea crônica, migrânea com corpalgia,
hemifibromialgia, até fibromigrânea (Figura 2).
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Correspondence
Marcelo M. VMarcelo M. V
Marcelo M. VMarcelo M. V
Marcelo M. V
alença, MDalença, MD
alença, MDalença, MD
alença, MD
, PhD, PhD
, PhD, PhD
, PhD
Unidade Funcional de Neurologia e Neurocirurgia,
Departamento de Neuropsiquiatria, UFPE, Cidade Universitária,
50670-420 – Recife, PE, Brazil
Submetido: 5 maio 2011
Aceito: 29 maio 2011
FIBROMIGRÂNEA: UMA NOVA DENOMINAÇÃO PARA UMA VELHA DOENÇA?